TEOLOGIA

TEOLOGIA APLICADA

A alma e a ressureição

"O meu povo está sendo destruído, porque lhe falta o conhecimento." Os 4.6

A ALMA E A RESSURREIÇÃO

DIÁLOGO DE GREGÓRIO, BISPO DE NISSA, COM A SUA IRMÃ MACRINA, SOBRE A ALMA E A RESSURREIÇÃO

 

Índice

I.   A NATUREZA ESPIRITUAL DA ALMA E A SUA PERMANÊNCIA DEPOIS DA MORTE

rerere

PRÓLOGO

CIRCUNSTÂNCIAS DO DIÁLOGO SOBRE A ALMA E A RESSURREIÇÃO E INÍCIO DO DEBATE

 

Visita de Gregório à sua irmã Macrina

Quando o grande santo Basílio deixou esta vida  humana para voltar a Deus, apresentou-se um motivo comum de luto para todas as igrejas e eu, enquanto estava  ainda com vida a minha irmã e mestra,2 apressei-me em partilhar com ela a infelicidade que experimentava por causa de nosso irmão; minha alma estava muita abatida pela dor que experimentava por causa de uma tão grande perda, e eu procurava alguém que estivesse disposto a dividir comigo as lágrimas e provasse uma tristeza tão forte quanto à minha. Quando fomos um ao encontro do outro, minha tristeza foi avivada em ver nossa mestra aparecer diante de meus olhos, uma vez que ela também fora atingida por uma doença mortal. Mas ela, imitando os especialistas na arte da cavalaria, deixou a violência de meu desgosto me arrastar por alguns momentos para, em seguida, contê-lo com sua palavra, corrigindo com a sua própria razão, à semelhança de um freio, a minha alma recalcitrante;3 e ela me citou a famosa palavra do Apóstolo segundo a qual não é necessário afligir-se no que tange aos mortos, uma vez que isto é um sentimento que experimentam somente aqueles que não possuem nenhuma esperança.4

 

O medo da morte

O coração ainda me ardia por causa da aflição, quando eu lhe disse: “Como é possível que os homens ponham em prática esta palavra, se em cada um deles é assim inata uma aversão natural pela morte, e se quem observa um morto não suporta de bom grado este espetáculo, enquanto quem vê aproximar-se a morte faz de tudo para afugentá-la com todas as suas forças? E uma vez que também as leis vigentes  consideram a morte como  o supremo delito e a suprema punição. Como é possível não dar algum peso à partida da vida quando morrem os estrangeiros – para não falar, em seguida,  da morte dos familiares? Vemos também, digo eu, que todos os esforços dos homens têm em vista fazer-nos permanecer com vida. As habitações foram concebidas por nós justamente  para que os corpos não sofram o frio ou o calor,  presentes no ambiente externo. E o que  é o trabalho da terra senão preparação dos meios para subsistir? O cuidado com a vida nasce simplesmente do medo da morte. E a medicina,  por que desfruta de tanta  reputação junto aos homens? Não é porque pareça combater a morte com as suas artes? E as couraças, os escudos, as cnêmides, os elmos, as armas defensivas, os muros que circundam as cidades, os portões revestidos de ferro, as valas de segurança, e as outras defesas análogas, donde provêm, senão do medo da morte? Se a morte é por natureza

tão assustadora, como se pode obedecer facilmente àquele que o convida a permanecer imune a toda tristeza diante de um defunto?”

“Mas por que – me perguntou a mestra – a morte te parece tão dolorosa em si mesma? O comportamento habitual de quem reflete pouco não basta para justificar esta repulsão.”

Incerteza sobre a sorte da alma

E eu lhe repliquei: “E como não poderia ser digno de aflição o fato de ver de repente sem respiração, sem voz e imóvel, um ser humano que até um momento atrás vivia e falava? Todos os órgãos sensoriais dados pela natureza se extinguiram para ele: não funcionam mais nem a vista, nem o ouvido, nem as outras faculdades pelas quais a sensação é capaz de perceber. Podemos aproximar dele fogo ou um ferro, cortar-lhe o corpo com uma espada, entregá-lo aos animais carnívoros,  sepultá-lo: diante de tudo isto a morte se comporta do mesmo modo. Quando se nota, portanto, tal mudança, quando o princípio vital – qualquer que seja a sua natureza – de repente torna-se escondido e invisível, do mesmo modo como uma lâmpada apagada, a chama acesa que até então brilhava nela –, ela não permanece mais sobre a mecha nem se transfere para outro lugar, mas se dissolve completamente – como se pode permanecer insensível diante de semelhante processo, que não se baseia em nenhum fato evidente? Quando ouvimos falar da saída da alma, vemos aquilo que permanece, mas o que diz respeito ao princípio que se separa [do corpo] não conhecemos nem a sua natureza nem o lugar para onde transmigra, uma vez que nem a terra, nem o ar, nem a água, nem qualquer outro  elemento mostra em si a presença da força que abandonou o corpo: uma vez que esta  dele saiu, aquilo que permanece é um cadáver destinado à corrupção”.5

Enquanto eu assim falava, a mestra me fez aceno com a mão para pedir silêncio e me perguntou: “O medo de que alma não subsista para sempre, mas pereça com a dissolução do corpo, te perturba e confunde a tua mente?”

 

Escritura e filosofia não fornecem uma resposta satisfatória

E eu, que não tinha ainda conseguido recuperar a lucidez racional depois da dolorosa perturbação, respondi com tom assaz ousado, sem verdadeiramente refletir acerca do  que eu falava. De fato, afirmei que as palavras divinas assemelhavam-se às injunções,  nos constrangendo a acreditar que a alma deve subsistir para sempre: “Não é um argumento racional que nos conduziu a tal crença. A nossa mente parece acolher este mandamento de modo servil, com medo, mas não dá um assentimento espontâneo às  suas palavras. A nossa aflição pelos defuntos torna-se mais forte justamente porque não sabemos com precisão se o princípio vital continua a existir por si mesmo, para onde vai, de que modo existe, ou, se, ao contrário, não existe mais. A incerteza acerca da verdade torna igualmente acreditáveis as suposições opostas: alguns têm tal opinião; outros possuem opinião contrária. E é assim que, entre os gregos, alguns, que gozam de não pouca reputação como filósofos, tiveram tais concepções e as expuseram neste sentido.6

Virtude, vida presente e vida eterna

Abandone – retomou a mestra – essas tolices estranhas para nós; servindo-se delas, o inventor da mentira cria de modo convincente opiniões  errôneas para prejudicar a verdade. Recorda-te, ao contrário,  que pensar assim a propósito da alma outra coisa não é senão ser estranho à virtude, ver somente os prazeres presentes e perder toda  esperança na vida eterna, na qual a virtude é única a triunfar.

“Mas como poderíamos, lhe perguntei, ter acerca da permanência da alma uma opinião sólida e inquebrantável? [20] Eu também me dou conta de que a vida humana sentirá falta da sua coisa mais bela – falo propriamente da virtude – se não se produz em nós a tal propósito uma justificação que não dê margem a dúvidas. Como pode, de fato, existir a virtude para aqueles que acreditam que a vida presente circunscreve toda a existência, e que não nutrem nenhuma esperança na existência de alguma coisa depois desta?”

 

Papel dos atores do diálogo

“É preciso, portanto, procurar, diz a mestra, um justo ponto de partida para o nosso raciocínio. Se tu desejas, tome também as partes da tese contrária, uma vez que vejo que o teu pensamento se move em direção a tal conclusão. Graças a tal contraposição, podemos ir em busca do raciocínio verdadeiro.”

Após este convite, eu lhe pedi para não acreditar que fazia objeções fundadas na verdade, mas que eu desejava estabelecer um sólido raciocínio  sobre a alma: os argumentos contrários teriam sido refutados justamente em vista de tal fim.

I.   A NATUREZA ESPIRITUAL DA ALMA E A SUA PERMANÊNCIA DEPOIS DA MORTE

A alma, localizada nos elementos, deve perecer; senão, onde ela está?

“Aqueles que sustentam as teses contrárias – disse eu – não afirmam talvez que o corpo, sendo composto, se dissolve nos seus elementos constitutivos. E, uma vez dissolvida esta coesão dos elementos presentes no corpo, cada um deles tende, como é natural, a retornar à sua família própria, pois sua natureza mesma, por uma espécie de atração irresistível, restitui os elementos, em seu ser próprio, àquilo que é do mesmo gênero: aquilo que em nós é quente retornará ao quente, ao passo que o elemento  feito de terra retornará àquilo que é sólido, e para cada um dos outros elementos se verifica o retorno para aquilo que lhe é afim. A alma, depois deste processo, onde se encontra? Quem diz que essa se encontra nos elementos deve necessariamente admitir que se identifica com eles. Uma mistura entre elementos estranhos não é, de fato, possível; e mesmo admitindo que se verifique, essa, baseando-se em qualidades contrárias, resultaria em uma mistura complexa; e aquilo que é complexo não é simples,  e é visível somente  em um composto. Mas aquilo que é composto está necessariamente sujeito à dissolução;  e a dissolução comporta a destruição do composto. Ora, aquilo que se corrompe não é imortal, ou então poderíamos dizer que a carne também é imortal, quando a dissolução a

reduz em seus elementos. E se alma é alguma coisa de diverso desses elementos, onde o nosso raciocínio pode supor a existência dela? Essa não se encontra presente em seus elementos porque é diversa deles, e no mundo não há nenhum outro lugar no qual a alma possa residir de modo apropriado à sua natureza. Mas aquilo que não se encontra em nenhum lugar de fato não existe”.

 

O materialismo de Epicuro

E a mestra, depois de ter um pouco suspirado acerca dessas  minhas  palavras, replicou: “Tais argumentos e outros semelhantes talvez os tenham utilizado os estoicos e os epicureus contra o Apóstolo quando outrora se reuniram em Atenas.7 Soube que especialmente Epicuro deixou-se arrastar por estas pressuposições, segundo as quais a natureza dos seres é imaginada como produto do acaso, que exclui a passagem da Providência através das várias coisas. Consequentemente, ele julga a vida humana semelhante a uma bolha de ar: o nosso corpo circunda o ar interno até quando este for mantido sob o controle por aquilo que o envolve; mas quando a massa externa se desfaz, o ar também que aí estava encerrado se dissolve com ela.8 Para este filósofo, de fato, o confim da natureza era aquilo que aparece, o fenômeno:9  ele  faz da sensação o critério  da apreensão de todas as coisas, obstruindo por completo os órgãos dos sentidos  da  alma; não é capaz de considerar nenhuma das realidades inteligíveis e incorpóreas, tal como aquele que permanece aprisionado em uma pequena casa sem contemplar as maravilhas do céu porque a visão das coisas externas é impedida pelos muros e pelo teto. Todos os objetos sensíveis que se veem no universo são verdadeiramente muros de  terra, que com a sua presença impedem às pessoas mesquinhas de contemplar o inteligível. [24]

 

Quem vê uma veste pensa no tecedor; a vista do navio faz pensar em seu construtor; e no pensamento de quem observa um edifício se descortina, ao lado desta, também a mão de quem o edificou. Quem, ao contrário, observa o universo não consegue entrever aquele que nele se revela.10

 

 

   

 

 

A lógica exige a existência da alma…Não iniciado

Esses opositores, caso pensem que a alma não se encontra em parte alguma justamente porque não tem a mesma natureza dos elementos, deveriam sustentar, antes de tudo, que também a vida corpórea está privada da alma: de fato, o corpo outra coisa não é senão um conjunto de elementos; dizem, portanto, que a alma,  que  também vivifica o composto, não se encontra tampouco neles. Se não é possível,  na opinião  deles, que a alma exista enquanto existem os elementos, a nossa vida deveria  resultar  para eles somente uma coisa morta. E se não negam que a alma se encontra no corpo,


 

… bem como a existência de Deus

Deveriam ter a audácia de sustentar a mesma tese a propósito da natureza divina. Como podem afirmar que a natureza inteligente, imaterial e invisível, que  penetra  o úmido e o mole, o quente e o sólido, mantém os seres na existência sem ter parentesco com eles, nos quais ela se encontra, e sem que esta heterogeneidade a impeça de estar neles? Do ensinamento deles deveria ser, portanto, supresso totalmente o princípio divino, que governa todos os seres.

“Acerca deste ponto justamente, eu disse, como poderiam os adversários julgar inatacável o sem ensinamento, segundo o qual tudo deriva de Deus e se encontra conservado nele, e existe um princípio divino superior à natureza dos seres?”

E ela disse:11 “Seria melhor manter silêncio acerca de tal argumento, e não estimar dignas de resposta proposições estultas e ímpias: uma palavra divina também nos proíbe responder ao estulto com a sua própria estultícia;12 segundo o profeta, é estulto quem  nega a existência de Deus. Mas visto que é preciso abordar também este assunto, eu te direi uma palavra, que não é minha nem de qualquer outro homem – quem quer que ele seja, seria assaz pequeno para dizê-lo: trata-se da própria palavra que o criado diz através do que aparece, e que o ouvido do homem escuta, uma vez que as coisas visíveis fazem ressoar no coração a sabedoria e a arte do Verbo divino. O criado grita ao seu Criador, enquanto os céus, como diz o profeta, celebram com as suas vozes inefáveis a glória de Deus.13

 

A harmonia da criação proclama a existência de Deus

Pense-se na harmonia do universo, nas maravilhas dos céus e da terra e no fato de  que os elementos, mesmo sendo contrários entre si por natureza, se entrelaçam em uma união indescritível, para chegar ao mesmo escopo, e cada um contribui segundo as suas próprias possibilidades à subsistência do universo. As coisas puras de toda mistura e de toda relação não se separaram umas das outras por causa de suas qualidades particulares, e mesmo misturando-se entre si com as suas qualidades opostas não se destroem reciprocamente. Aquelas que, por natureza, são conduzidas para o alto são arrastadas para baixo quando o calor do sol desce graças aos seus raios. Os corpos pesados, ao contrário, se erguem quando os vapores os tornam tênues: assim, a água, contrariamente à sua natureza, é movida para o alto, levada pelos ventos através da atmosfera; e o fogo etéreo se aproxima da terra, de modo que as regiões mais baixas não sejam privadas do calor. A umidade da chuva que se espalha sobre a terra, mesmo sendo única  por  natureza, gera uma infinita variedade de rebentos, penetrando em todos os objetos de modo apropriado. Pense-se também na rapidíssima rotação da esfera celeste, no movimento contrário dos círculos situados no interior, bem como nas passagens inferiores, nas conjunções e nas distâncias harmoniosas dos astros; quem observa essas

coisas com o olho intelectivo da alma14 não aprende claramente, a partir dos fenômenos, senão uma potência divina, artisticamente capaz e sábia, manifestando-se nos seres e penetrando através de todas as realidades, ajusta as partes ao todo e perfaz o todo graças às partes, e governa com uma única lei o universo, que permanece em si mesmo, se  move em torno de si mesmo, não cessa jamais de mover-se, e não se transfere jamais para um lugar diverso daquele em que se encontra?”

 

O homem como microcosmo: a existência de Deus e a existência da alma

“Mas como pode – objetei – a certeza da existência de Deus demonstrar também a existência da alma humana? Pois isto não é absolutamente a mesma coisa,  Deus e a  alma, no sentido de que admitir a existência do primeiro significaria necessariamente admitir também a do segundo.”

Ela me disse: “Os sábios dizem que o homem é um microcosmo15 que contém em si mesmo os elementos dos quais o universo está repleto. Se esta teoria é justa, e parece  que o seja, não teremos talvez necessidade do socorro de um segundo argumento para que sejam solidamente confirmadas as nossas suposições sobre a alma. Admitimos que  ela existe por si mesma (kath’ heautēn),16 com uma natureza distinta e original,  estranha  à espessura própria dos corpos. Quando chegamos ao conhecimento de todo o universo mediante as percepções sensoriais, a mesma energia que anima as nossas sensações nos conduz a pensar no objeto e na ideia que se encontra acima dessas,17 e o nosso olho torna-se intérprete da sabedoria onipotente que se contempla no universo e que anuncia aquele que o mantém sob seu domínio através dela; do mesmo modo, quando  observamos o mundo que está em nós, não são impulsos de pouca importância  que  temos para conjecturar, através do que nos aparece, aquilo  também que está escondido. E ela está escondida, a realidade que, sendo em si mesma objeto de inteligência e  invisível, escapa à percepção sensorial”.

E eu objetei: “Na sabedoria que tudo ultrapassa pode-se pensar graças aos princípios racionais, feitos de sabedoria e de arte, que se veem na natureza dos seres, e graças à harmonia e à ordem [do universo]; mas quem segue os traços daquilo que está escondido através daquilo que se vê, como a alma faz para conhecer através dos sinais corporais?”

II.   A NATUREZA DA ALMA

Definição proposta: a alma, potência intelectiva e que anima o corpo

A alma, potência que move o corpo…

“Isto – respondeu a virgem, podem fazê-lo especialmente aqueles que, seguindo o famoso e sábio preceito, desejam ‘conhecer a si mesmos’. A alma mesma basta para instruir-nos acerca das concepções que devemos ter acerca dela mesma: ela é uma realidade imaterial e incorporal, que age e se move segundo sua própria natureza e que, através dos órgãos do corpo, manifesta seus próprios movimentos. A conformação dos órgãos corpóreos continua a existir também nos cadáveres, mas está privada de

movimento e de energia, enquanto a potência da alma não se hospeda mais nela. [O corpo] se move quando a sensação age nos órgãos e quando a energia  inteligível  atravessa a faculdade sensitiva, movendo com os próprios impulsos os órgãos sensoriais conforma as impressões [que esses recebem]”.

…potência intelectiva, princípio do conhecimento sensível

“Que é, portanto, a alma – perguntei – se é possível esboçar sua natureza de algum modo, para ter, por este esboço, certa inteligência do assunto?”

E a mestra assim se expressou: “Uns e outros formularam acerca dela concepções diferentes, cada um fornecendo a definição segundo suas próprias impressões. Quanto a nós, esta é a ideia que temos acerca da alma: a alma é substância gerada (ousía genētē), vivente (zōsa), intelectual (noerá), que, em um corpo dotado de órgãos sensoriais transmite, em virtude de si mesma, a força vital e a faculdade de perceber os objetos sensíveis até que a natureza que recebe as percepções continue a existir”.

Prova pelo diagnóstico do médico…

Enquanto dizia essas palavras, ela me indicou com a mão o médico que, para cuidar- lhe do corpo, estava sentado junto dela; portanto, assim continuou: “Eis quem pode testemunhar a verdade de tudo quanto disse. Como pode este, tocando com os dedos  uma artéria, auscultar com o simples tato a natureza que grita e lhe descreve o próprio estado patológico e que lhe diz que a doença depende da excessiva tensão do corpo e  parte das vísceras, enquanto a febre atinge tal grau de inflamação? O olho também lhe ensina outras coisas análogas,  quando observo a atitude do doente estendido, o definhamento das carnes. O estado interno do doente é revelado pela cor externa, pálido  e bilioso, e pelo olhar direcionado automaticamente para a realidade que causa incômodo  e sofrimento. Da mesma maneira o ouvido é fonte de ensinamentos semelhantes, quando reconhece a doença graças à frequência da respiração e ao gemido que acompanha a respiração. E poderíamos dizer que o mal não escapa tampouco a um olfato experiente: graças a determinada qualidade da respiração,  este último  é de fato capaz de reconhecer a doença que se esconde nas vísceras. Seria possível tudo isso, se uma força inteligível não estivesse presente em cada um dos órgãos sensoriais? Que ensinamento a mão nos teria dado por si mesma, se o pensamento não tivesse conduzido o tato ao conhecimento do objeto? E em que o ouvido, separado da inteligência, ou o olho, ou o nariz, ou um outro órgão dos sentidos, teriam contribuído para o conhecimento do objeto, se cada um deles fosse considerado isoladamente? Sim, nada mais verdadeiro do que a excelente palavra atribuída pela tradição a um daqueles que recebeu a formação profana: quem vê  e quem sente é a inteligência.

 

…pela astronomia

Se não se admitisse a verdade desta palavra, como tu poderias, observando o sol  como o teu professor te ensinou a fazê-lo, afirmar que a sua circunferência não é tão

grande assim como parece à multidão, mas supera muitas vezes a grandeza de toda a terra? Não podes talvez afirmar com segurança que as coisas estejam assim dispostas porque, partindo daquilo que te parece, tu perscrutaste com o teu pensamento os seus movimentos, os intervalos de tempo e de espaço, e as causas dos eclipses? Quando, pois, observas a diminuição e o crescimento da lua, o aspecto visível deste astro te ensina que este é, por natureza, privado de luz, e gira em uma órbita próxima da terra; mas sua claridade procede dos raios do sol, como sucede, naturalmente, para os espelhos que, recebendo o sol em sua superfície, emitem não um brilho que lhes seria próprio,  mas a luz do sol, que se reflete em um corpo liso e brilhante, na direção oposta.

Mecanismo das fases da lua

Quem observa sem raciocinar tem a impressão de que a lua possua um esplendor próprio. Mas demonstra-se que não é assim: quando se encontra em posição diametralmente oposta ao sol, ela se ilumina em todo o hemisfério voltado para nós; mas, uma vez que percorre velozmente a própria órbita que é também a menor, essa realiza mais de doze voltas, antes que o sol chegue a percorrer uma só órbita. Assim  sucede que o astro (da lua) não é sempre pleno de luz: em sua volta veloz não permanece sempre naquela posição oposta ao sol, que faz com que todo o hemisfério voltado para nós seja iluminado pelos raios solares. Quando se encontra em posição oblíqua ao sol, enquanto o hemisfério que se encontra da sua parte é circundado pelo feixe dos raios luminosos, aquele que está voltado em nossa direção se obscurece inevitavelmente, uma vez que a  luz se transfere da parte que não pode ver o sol àquela que se encontra voltada em  direção a ele. Quando, pois, é colocada no alinhamento abaixo do disco solar, ela recebe por detrás os raios; então, enquanto o hemisfério superior é iluminado,  a parte voltada  em nossa direção torna-se invisível, uma vez que essa é, por natureza, privada de esplendor e de luz. Quando na própria revolução supera novamente o sol e se encontra em posição oblíqua em relação aos seus raios, a parte da lua que antes estava escura começa a resplandecer, uma vez que o raio se transfere da região iluminada àquela que  até um momento atrás estava privada de esplendor.

 

Papel da indução nos casos da visão, da geometria e de outras ciências

Não vês, portanto, que a faculdade da visão te ensina tantas coisas importantes? Esta faculdade não poderia ajudar-te sozinha a compreendê-las se não houvesse um princípio que vê através da vista e que, utilizando as percepções sensoriais como um guia,  atravessa aquilo que se vê para chegar àquilo que é invisível. E que necessidade existe de acrescentar os procedimentos da geometria, que, através das figuras sensíveis, nos conduzem àquilo que está acima da sensação, e os outros infinitos procedimentos, que, através das nossas faculdades corpóreas, tornam possível a compreensão da essência intelectual escondida em nossa natureza?”18

 

Um objeto mecânico tem uma alma?

“Mas como? – disse eu. Formulemos uma hipótese: os elementos sensíveis têm em comum, por natureza, a matéria, mas esta se diferencia muito conforme as propriedades peculiares de cada espécie: assim, os movimentos contrários, uma vez que um se processa de baixo para cima, e um outro, de cima para baixo;  as espécies não são,  pois, as mesmas, e as qualidades são diferentes. Por que então não se poderia supor que a essência de alguns desses elementos faz parte de uma força proporcionada capaz de colocar em atividade,  a partir de suas propriedades, a faculdade imaginativa e os movimentos de ordem intelectual? É o que acontece, por exemplo, nos numerosos instrumentos que vemos realizar os construtores de máquinas, instrumentos onde esta potência, habilmente disposta na matéria, imita a natureza mostrando-se semelhante a  esta não somente na forma, mas também nos movimentos, e emite sons, uma vez que a máquina é capaz de ressoar em seus órgãos vocais; e evidentemente não observamos nesses casos nenhuma potência intelectual que realiza para cada um a figura, a forma [visível], o som, o movimento. Se disséssemos que a mesma coisa se verifica também para este instrumento mecânico que nós somos, sem que nenhuma realidade  intelectual  aí se encontre mesclada e lhe confira um caráter original, e acrescentássemos que, visto que certa potência de movimento reside no ser dos elementos que nos compõem, e que todo efeito é produzido por esta potência, que outra coisa não é senão um movimento que se manifesta impelindo ao conhecimento daquilo que se deseja conhecer; por que então tudo isto deveria demonstrar que a substância intelectual e incorpórea da alma existe por si mesma, e não antes sua inexistência pura e simples?”19

 

Esse objeto pressupõe uma inteligência que a conceba e a realiza

E ela respondeu: “O exemplo que citaste vem em ajuda ao nosso propósito, e todo raciocínio arquitetado contra nós, para nos refutar, contribuirá não pouco para reforçar o nosso pensamento”.

“Como dizes isto?”

“É que, disse ela, saber manipular e dispor a matéria inanimada de modo que a arte infusa nos instrumentos fabricados assuma às vezes a função da alma  – esses instrumentos onde são imitados os movimentos, os sons, a forma e outras coisas semelhantes – constitui uma prova da existência no homem de um princípio, graças ao qual, ele, servindo-se da própria faculdade intuitiva e inventiva, é capaz de pensar e de preparar na própria mente os vários instrumentos, de colocá-los em prática mediante a arte e de revelar o próprio pensamento na matéria.

Exemplo do instrumento de música: um órgão hidráulico?

Antes de tudo, ele sabe que, para a emissão de um som, é preciso um sopro; em seguida, com o seu raciocínio, examine o modo de dar origem a este sopro para o instrumento. Com tal objetivo, ele observa a natureza dos elementos, e se dá conta de que não existe nos seres o vazio absoluto, mas é por comparação com o que é mais pesado que se julga como vazio o que é mais leve, uma vez que o ar também,

considerado em si mesmo e em sua própria constituição, é denso e pleno. Quando dizemos que um vaso está vazio, nós falamos de modo impróprio. A pessoa instruída sabe, ao contrário, que este, mesmo quando não contém líquido algum está sempre, no entanto, cheio de ar. Eis a prova: uma ânfora mergulhada em um tanque não se enche de água imediatamente, mas, em primeiro momento, ela boia; o ar encerrado mantém a cavidade para cima; a ânfora só afunda quando é submetida à pressão pela mão de quem tira a água: só então faz entrar a água através de seu orifício. Este processo demonstra  que esta não está vazia antes de encher-se de água. Em seu orifício, podemos notar uma luta entre os dois elementos: a água é impelida pelo seu peso em direção à sua cavidade interna e a inunda, ao passo que o ar, por sua vez, encerrado na cavidade é comprimido em torno da água aí onde se encontra o orifício e se dirige para cima; deste modo a água, atravessada pelo ar, borbulha e espuma por causa do vento impetuoso que se produz. O artista compreendeu bem tudo isto e, pensando na natureza desses dois elementos, faz  ver o modo de introduzir o vento no objeto mecânico. Com efeito, depois de ter construído um recipiente em uma matéria compacta e ter mantido de todos os lados, sem possibilidade de escapar, o ar contido, introduz-se a água no recipiente por um orifício, depois de ter medido a quantidade segundo as proporções necessárias; em seguida, faz sair a água através de um tubo, do lado oposto; e o ar, fortemente comprimido pela água, torna-se sopro, que, saindo pelo tubo preparado para este efeito, produz o som.

 

A natureza é incapaz de tais realizações

As aparências não mostram, portanto, de modo evidente, que no homem  a  inteligência é alguma coisa diversa daquilo que se vê? A inteligência, graças à própria natureza invisível e pensante, prepara antecipadamente nele mesmo essas realizações e, em seguida, servindo-se da matéria, torna visível o pensamento formado nele? Se, à base da objeção que nos é colocada, pudéssemos imputar tais maravilhas à natureza dos elementos, os vários mecanismos se formariam espontaneamente: o bronze não esperaria com paciência a intervenção do artista para assumir uma forma humana, mas a receberia sempre de sua própria natureza; o ar, por sua vez, não teria necessidade de tubo para produzir um som, mas ressoaria sempre por si mesmo, enquanto expande segundo a ocorrência; e o movimento em direção ao alto da água não teria sido possível pela força  de um canal, na medida em que um artifício a pressione e a force a mover-se de modo contrário à sua natureza: a água, impelida para o alto pela sua própria natureza,  se elevaria sozinha em direção ao objeto mecânico. Se, porém, nenhum desses fenômenos é produzido automaticamente pela natureza dos elementos, uma vez que é a arte que direciona cada um desses para um fim; e se a arte é, por sua vez, uma forma de inteligência, um movimento e uma atividade, tudo quanto havíamos dito e as objeções  que nos são feitas demonstram que o intelecto é alguma coisa de diverso das aparências exteriores.”

 

Afinidades e diferenças entre a alma intelectual e Deus

E eu observei: “Estou de acordo também eu acerca do fato de que aquilo que não se

vê não é idêntico àquilo que se vê; mas não encontro neste raciocínio o objeto da nossa discussão: não me é ainda evidente a opinião que devemos ter acerca deste princípio que não se vê. O teu discurso me ensinou que não se trata de um princípio material; mas não sei ainda o que pode ser dito acerca disso: é sobretudo o que desejava aprender, não o que esse princípio não é, mas precisamente o que ele é”.

E ela explicou-me: “Podemos aprender muito acerca de várias coisas enquanto, na tentativa de compreender o objeto de nossa pesquisa, dizemos que a sua essência não corresponde a determinada coisa. Quando falamos de um homem que não é mau (apónēron), apresentamos um homem bom (agathon); quando dizemos que um homem está privado de virilidade (ávandron), reconhecemos nele  um covarde (deilon); e poderemos citar outros exemplos análogos. Negando os defeitos, somos levados a pensar a noção do melhor, ou inversamente, negando as partes boas, chegamos a supor a existência das partes más, e indicamos assim o mau. Assim, portanto, para quem refletiu também a propósito do discurso que fizemos, a noção que nos falta em relação ao nosso objeto de pesquisa poderia certamente ser atingida sem erro. O que procuramos é a essência mesma da inteligência.

Aquele que, por causa da sua atividade que se manifesta a nós, não duvida da existência do princípio de que falamos e deseja saber o que ela é, pode encontrá-lo de modo satisfatório: uma vez apreendido que esta nada é daquilo que é percebido pelas sensações – nem uma cor, nem uma figura, nem uma resistência, nem um peso,  nem  uma quantidade, nem uma tríplice dimensão, nem uma colocação em determinado lugar, nem nada do que se concebe a propósito da matéria, absolutamente nada, supondo que haja ainda outros dados sensíveis além dessas coisas”.

Enquanto assim falava, eu a interrompi observando: “Não consigo compreender como a eliminação de todos esses elementos20 do nosso discurso não comporte também um desaparecimento daquilo que procuramos. Na minha opinião, de fato, se se prescinde de tudo isso, é difícil ver alguma coisa  à qual possa prender-se a nossa atividade cognoscitiva. Na procura das coisas sempre chegamos a tocar aquilo que procuramos  com o nosso pensamento perscrutador; como os cegos são conduzidos até a porta pelo contato com as paredes [41], assim também chegamos a tocar uma coisa exprimível com as palavras: ou uma cor, ou uma figura, ou uma quantidade, ou uma daquelas coisas por  ti mencionadas anteriormente; quando, ao contrário, se nega a sua existência, a nossa pequenez nos leva a pensar justamente que nada existe”.

Mas ela, embargando-me a palavra, exclamou: “Que coisa absurda é esta!  A que ponto chega esta opinião mesquinha e terrena sobre os seres! Se é excluído da existência tudo aquilo que não é cognoscível por meio da sensação, quem assim fala não deve admitir nem mesmo a existência da força que governa todo o universo e que abarca todas as coisas: à base de tal raciocínio, uma vez apreendido que a natureza divina é incorpórea e sem forma, ele pensa que essa de fato não existe. Mas, se no caso da natureza divina a sua incorporeidade não cancela a sua existência, como podemos expulsar da existência a inteligência humana, reduzindo-a a nada ao mesmo tempo que são eliminadas as propriedades corpóreas?”.

E eu observei: “Mas este raciocínio nos faz passar de um absurdo ao outro, uma vez que noz leva a crer que a nossa mente seja idêntica à natureza divina, se é verdade que entre ambas se podem conceber somente eliminando as percepções sensoriais”.

“Não considerar essas duas coisas idênticas (tautón) entre si – disse nossa mestra – porque farias um discurso ímpio; mas, como tu aprendeste o ensinamento recebido da Escritura divina, declare que este é semelhante àquele.21 Aquilo que nasceu  como imagem é, plenamente, semelhante ao modelo: à semelhança deste, é um ser inteligente (noerón), incorpóreo (asómaton) e privado de todo peso, e como este escapa a qualquer medida de extensão (diastēmatikēn katamétrēsin). Todavia, não tem as suas mesmas propriedades naturais: se fosse de todo idêntico ao modelo, não seria mais uma imagem. A natureza incriada revela o modelo com os mesmos meios com os quais a natureza criada revela a imagem: como em um pequeno pedaço de vidro exposto aos raios [do sol] se vê frequentemente todo o disco solar que aparece não em sua real grandeza, mas somente na medida consentida pela pequenez do fragmento, assim também, na pequenez de nossa natureza, refulgem as imagens das inefáveis propriedades da divindade; deste modo, a razão, conduzida por estas como pela mão, uma vez rejeitadas as propriedades corpóreas no exame da questão, não se afasta da compreensão da essência do intelecto, nem, de outro lado, considera iguais entre si a natureza infinita e pura e aquela pequena e caduca.22 Esta julga que a substância do intelecto é inteligível, uma vez que é imagem de uma substância também inteligível, mas não chega a afirmar que a imagem é idêntica ao modelo. Como não negamos que, graças à inefável sabedoria de Deus que se revela no universo, a natureza e a potência divina estão presentes em todos os seres que assim continuam a existir (entretanto, se se fizesse um discurso sobre sua natureza, [ver-se-ia] que a essência de Deus se distancia em larga medida dos seres singulares que aparecem e que se podem pensar presentes no criado); assim nada impede em acreditar que a essência da alma – diversa de per si [das coisas sensíveis] qualquer que seja a ideia que dela tenhamos – não é cancelada pela existência só porque os elementos que se veem no universo não convêm à sua natureza. Como dissemos, nem mesmo os corpos vivos, cuja conformação depende da mistura dos elementos, possuem por causa de sua espessura física alguma coisa em comum com a essência simples e invisível da alma;  entretanto,  não se pode negar a presença nesses do princípio vital da alma, que aí se encontra misturada, segundo um princípio  que supera toda possibilidade de compreensão humana.23

Nem mesmo quando os elementos (stoicheíon) contidos no corpo se dissolvem em si mesmos perece o princípio que os mantinha ligados com o seu princípio vital. Como, quando ainda existe a combinação dos elementos, cada parte é animada para que a alma se encontra ligada do mesmo modo às várias partes que compõem o corpo – esta não pode ser definida como dura e resistente porque está misturada com a terra, nem como úmida ou fria ou em posse da propriedade oposta enquanto se encontra em todos os elementos e transmite para cada um deles o princípio vital; assim, quando também o composto se dissolve e se decompõe em seus vários elementos, não é de fato absurdo pensar que a natureza simples e pura da alma esteja presente em cada uma das várias

partes: o princípio que se encontra unido de uma maneira inexplicável ao composto formado pelos elementos continua a permanecer perpetuamente com os componentes da mistura, sem ser de modo algum arrancado desta união. Aquilo que escapa à composição não corre o risco, de fato, de dissolver-se juntamente com aquilo que é composto.”

E eu disse: “Ninguém pode negar que os elementos se unem entre si e se separam uns dos outros, e que justamente disto dependem a formação e a dissolução dos corpos. Grande é, porém, a diferença entre os elementos heterogêneos, no que diz respeito seja à sua colocação no espaço, seja às suas várias qualidades e propriedades; quando esses elementos se unem uns com os outros em um objeto, a natureza inteligente e indivisível que chamamos alma forma um todo natural com a unidade obtida; se, porém, os vários elementos [que o compõem] se separam e retornam à sede para onde sua natureza conduz cada um deles, qual será a sorte da alma, quando vir o seu veículo reduzido a vários fragmentos? Como um marinheiro, se o seu navio se rompe em vários pedaços em um naufrágio, não pode nadar contemporaneamente em direção a todas as suas partes dispersas em diversos pontos do mar, mas uma vez agarrado o pedaço que se apresenta, ele deixa que os outros sejam tragados pelas ondas, assim também a alma, não podendo por natureza dividir-se quando os elementos se separam: se justamente não pode libertar- se do corpo, se liga a um dos seus elementos e se separa dos outros; este raciocínio não nos leva de fato a pensar que esta [alma] é imortal porque vive em um elemento,  antes  de tudo mortal, porque não pode encontrar-se em vários elementos”.

 

A oposição radical alma-corpo…

Mas ela rebateu: “Aquilo que é inteligível e privado de dimensões não se contrai nem se dispersa, uma vez que a contração e a dispersão são propriedades dos corpos; graças à sua natureza invisível e incorpórea, isto está igualmente presente seja na união dos elementos no corpo, seja na sua divisão; não se contrai logo que esses se encerram no composto nem os abandona assim que retornam aos elementos afins e correspondentes à sua natureza, mesmo que possa parecer grande a distância que os separa, devida à diversidade dos elementos. Grande é, pois, a diferença entre aquilo que tende para o alto e é leve, e o que é pesado e feito de terra, entre o quente e o frio, entre o úmido e o seu oposto. E, no entanto, a natureza intelectual não experimenta dificuldade em encontrar-se em todos esses elementos aos quais se uniu, nem se divide na decomposição por causa das suas propriedades contrárias. A natureza indivisível não padece em  permanecer ligada aos elementos espacialmente longínquos  entre si, só porque esses parecem separados por grandes distâncias e pelas suas propriedades. De fato, agora podemos também contemplar com o nosso pensamento o céu e chegar, ao mesmo tempo, com a nossa curiosidade até os limites do universo: a faculdade contemplativa da nossa alma, mesmo chegando tão longe, não está sujeita a rupturas.

Portanto, nada impede à alma estar igualmente presente em todos os elementos do corpo, sejam esses misturados entre si quando se encontram ou divididos quando substitui a decomposição. Quando ouro e prata são fundidos juntos, nota-se nesses uma potência que é capaz de24 fundir o material; se, em seguida, [esses dois metais] se

separam um do outro na fusão, tal princípio, no entanto, permanece em cada um deles. Mesmo que a matéria se divida, a potência não se fraciona junto com a matéria: como pode de fato dividir-se o indivisível? Da mesma maneira, no encontro dos elementos pode-se notar também a presença da natureza inteligente da alma; esta não os abandona quando se decompõem, mas permanece neles, e mesmo estendendo-se quando se separaram, não se fraciona, nem se divide em seções particulares correspondentes ao número deles. Estas são propriedades das naturezas corpóreas e extensas; a natureza inteligente e indivisível não é, ao contrário, sujeita às vicissitudes da extensão espacial. A alma se encontra, portanto, nos elementos nos quais, uma vez por todas, ela foi gerada, e nenhuma necessidade pode arrancá-la desta união. Que há, portanto, de doloroso o fato de que o visível cede lugar ao invisível? E por que razão o teu pensamento nutre tal aversão diante da morte?”.

NATUREZA E FUNÇÃO DAS PAIXÕES E DOS MOVIMENTOS DA ALMA. A ESCRITURA COMO REGRA

Insuficiência da definição, que não explique a presença na alma do desejo e da ira

E eu, remontando em meu pensamento à definição da alma que ela havia estabelecido no discurso precedente, lhe disse que esta fórmula não tinha ilustrado suficientemente as faculdades (dynámeis) que se observam na alma. “Segundo o teu discurso, a alma é uma substância (noerà ousía) que transmite ao corpo, seu instrumento, a força vital (zotikēn dýnamin) de modo que faça funcionar as sensações. Mas a nossa alma não se limita a colocar em movimento a faculdade cognoscitiva e especulativa do pensamento produzindo-a em virtude da sua substância intelectual, ou a governar as faculdades sensoriais para que funcionem em conformidade com a sua natureza; nessa se notam também muitos movimentos sugeridos pela concupiscência e pela ira.25 Graças à  presença em nós dessas duas funções em sentido geral, temos a oportunidade de  constatar que a sua atividade e o seu movimento assumem grande variedade de manifestações. Muitas são as ações que se podem ver guiadas pela  faculdade concupiscível (tò epithymētikón); e muitas são também as ações produzidas pelo princípio irascível (tēs thymoeidous aitías); nenhum desses dois princípios é corpóreo, e tudo aquilo que é incorpóreo possui uma inteligência. A definição da alma dada por nós nos mostrou, de outro lado, que esta é um princípio inteligente. Consequentemente, de nosso discurso nasce um desses dois absurdos: ou a ira e a concupiscência são em nós outras almas, e em nós podemos notar, em lugar de uma só alma, uma pluralidade de almas; ou nem tampouco o nosso pensamento (tò dianoētikòn) deva ser considerado  uma alma (psychēn).26 A inteligência, de fato, se é própria de todas essas faculdades, ou mostra que todas essas são almas, ou exclui cada uma dessas, de maneira igual, das propriedades características da alma”.

 

Fracasso da razão acerca desta questão. Necessidade do recurso à Escritura

E ela me responde: “Tu também desejas indagar de modo coerente acerca desta

questão já debatida por outros: trata-se da ideia que é preciso ter acerca desses dois princípios, o concupiscível (tò epithymētikón) e o irascível (tò thymoeidés)27 para ver se fazem parte da essência da alma ou se estão nela presentes desde a sua formação originária ou se são, ao contrário, alguma coisa de adventício, acrescentados ao nosso ser posteriormente.28 A evidência da presença na alma  desses princípios  é um fato igualmente admitido por todos; mas nenhum raciocínio soube ainda dizer com exatidão que coisa é preciso pensar acerca deles, de modo a ter uma concepção segura. Ao contrário, quase todos os filósofos são tomados de dúvidas por causa de suas opiniões errôneas e diversas. Se a filosofia pagã, que discute esta questão com os seus artifícios, fosse suficiente verdadeiramente para nos fornecer uma demonstração, seria  talvez supérfluo acrescentar à pesquisa um discurso sobre a alma; mas uma vez que [os filósofos] chegaram a formular sobre a alma  teorias baseadas sobre aparências e arbitrárias, ao passo que nós, que não estamos livres de dizer o que  desejamos,  utilizamos a Escritura santa como regra e lei de toda doutrina, disto  resulta que, constrangidos a considerar somente a Escritura, aceitamos só aquilo que concorda com  as suas intenções.

 

Deixar de lado os filósofos; ater-se à semelhança alma-Deus que afirma a Escritura

Portanto, deixemos de lado a carruagem platônica, o par de potros cujos impulsos fazem dessemelhantes um do outro, e o cocheiro que os guia, todos enigmas dos quais Platão se serve para formular a sua teoria filosófica sobre a alma;29 deixemos igualmente de lado todas as teses do filósofo sucessivo [isto é, de Aristóteles], o qual indagando habilmente sobre os fenômenos e examinando  com cuidado o problema que nesse momento nos interessa, nos mostrou que a alma é mortal;30 deixemos também de lado os filósofos precedentes e sucessivos, tenham esses escritos em prosa, em  linguagem ritmada ou em versos. Tomemos, ao contrário, como base de nosso raciocínio  a Escritura inspirada por Deus, que nos impinge de nada julgar de excelso na alma que não seja próprio também da natureza divina. Aquele nos disse que a alma se assemelha a Deus,31  mostrou-nos também que aquilo  que é estranho a Deus não entra na definição da alma: a semelhança não poderia subsistir em coisas diferentes. Portanto, uma vez que nada (ouden)32 de semelhante se vê na natureza divina, à base de um raciocínio racional se deveria supor que esses aspectos não façam tampouco parte da essência da alma.

 

O caráter vão da dialética

Em nossa demonstração da verdade, devemos refutar como corrupto e suspeito  aquele tipo de raciocínio que tem em vista estabelecer firmemente a nossa doutrina através da dialética baseada na ciência silogística e analítica. De fato, para todos é uma evidência que a dialética, em sua vã curiosidade, é capaz tanto de arruinar a verdade  como de denunciar a mentira; por essa razão, a própria verdade nos parece frequentemente suspeita quando a queremos demonstrar com esta arte: a sua potência

seduz o nosso pensamento e o afasta da verdade. Se, ao contrário, adotamos um raciocínio simples e despojado de todo ornamento, podemos falar segundo as nossas capacidades, expondo acerca desta questão uma doutrina conforme à regra do ensinamento escriturístico.

 

Definir é reter o que distingue; aplicação às paixões da alma

O que é, portanto, que afirmamos? Que o homem, este ser vivo dotado de razão, é capaz de inteligência e de ciência, e isto é coisa atestada também pelos filósofos que não seguem as nossas doutrinas;33 tal definição não seria assim uma descrição de nossa natureza, se precisamente considerássemos a ira e a concupiscência e todas as outras análogas funções como pertencentes à sua essência, e em nenhum outro domínio se daria uma definição do objeto falando do que é comum em lugar  do que é particular  (tò  koinón antì tou idíou legon). Portanto, uma vez que a função concupiscível e a irascível se observam igualmente seja na natureza irracional, seja na natureza racional,  não se  pode caracterizar bem uma natureza particular segundo esses elementos comuns. Aquilo que na definição de uma natureza é supérfluo e deve ser rejeitado, como pode ter, como se fizesse parte da natureza, o poder de arruinar a definição? De fato, qualquer definição de determinada essência leva em consideração as características particulares do objeto; aquilo que não pertence a essas características resulta, ao contrário, estranho à definição. Todos admitem que as atividades irascível e concupiscível são comuns às naturezas racionais e àquelas irracionais; mas tais propriedades comuns não se identificam com as propriedades específicas. É, portanto, necessário supor que não entra nas propriedades comuns aquilo que caracteriza de modo mais apropriado a natureza humana. Mas, da mesma maneira que, vendo em nós a presença das faculdades sensoriais e das funções relativas à nutrição e ao crescimento não anula a definição já dada da alma (tal definição continua de fato a subsistir mesmo que também, essas funções estejam presentes nela),34 assim também, quando se observaram os movimentos da nossa natureza devidos  à ira  e à concupiscência, não se poderia impugnar corretamente a definição da alma, como se descrevesse a sua natureza de modo inadequado”.

 

Prova escriturística: Moisés libertado das paixões

“Que é preciso pensar a propósito [dessas faculdades inferiores], perguntei à mestra? Não sou ainda capaz de discernir  como podemos rejeitar essas faculdades que se encontram em nós, como se fossem estranhas à nossa natureza.”

“Tu mesmo podes ver, disse  ela,  que se instaura sempre uma luta  entre essas faculdades inferiores e a razão, e que nos esforçamos sempre por afastá-las da alma, porquanto seja possível.35 Alguns tiveram êxito nesta tentativa, como Moisés. Aprendemos, por exemplo, que ele sabia vencer a ira e o desejo: a história sagrada testemunha a seu respeito que era o mais manso dos homens (a mansidão é índice da calma e do afastamento da cólera) e que nada desejava de tudo aquilo  pelo  qual – como é possível constatar – se acende a concupiscência das pessoas comuns.36 Isso não se

teria verificado se a ira e a concupiscência fizessem parte da natureza da alma  e remetessem à sua essência. Quem se encontra fora da natureza não pode continuar a existir. Mas se Moisés existia e não era vítima de tais inclinações, essas são alguma coisa de diverso, e não fazem parte dela. Se a natureza é verdadeiramente aquilo que faz compreender a sua essência; se a libertação da ira e da concupiscência depende de nós, e se a sua destruição resulta não somente não prejudicial, mas proveitosa à nossa natureza, é evidente que essas últimas pertencem às coisas que se consideram estranhas à natureza e que não são a sua essência, mas somente paixões (páthē). A natureza é precisamente o que ela é.37

 

Definição da ira (thymós) e da concupiscência (epithymías) e das paixões (pathē) delas derivam

A ira, ao contrário, segundo muitos filósofos, é uma ebulição do sangue em torno do coração. Outros julgam-na como o desejo de retribuir com o mal a quem começou a fazer-nos mal.  Segundo a nossa concepção, a ira é, ao contrário, o impulso que nos leva a fazer mal a quem nos causou irritação. Nenhuma dessas definições convém à definição da alma. E se desejamos dar uma definição da concupiscência, digamos que essa é o desejo daquilo que nos falta, ou o desejo de degustar uma coisa prazerosa, ou a dor que experimentamos quando não podemos dispor de uma coisa de nosso agrado, ou uma inclinação para aquilo que é prazeroso e do qual não podemos desfrutar. Essas e outras semelhantes definições mostram o que é a concupiscência, mas não atingem a definição da alma. A mesma coisa se pode dizer a propósito de todas as outras inclinações que se observam na alma e que parecem antitéticas entre si, tais  como a covardia e a temeridade, a dor e o prazer, o medo e o desprezo e outras análogas: cada uma dessas parece afim à faculdade concupiscível ou àquela irascível, mas revela a própria natureza com uma definição particular. A temeridade e o desprezo manifestam de fato um impulso próprio da faculdade irascível, enquanto o estado próprio da covardia e do medo indica uma diminuição e um relaxamento desse mesmo impulso.  A dor, por sua vez, é alimentada por ambas as faculdades: o enfraquecimento da ira,  determinado pela impossibilidade de nos vingar de quem nos ofendeu, torna-se dor; e a recusa daquilo que desejamos e a privação daquilo que nos é agradável produzem em nosso pensamento  esta atitude sombria. A atitude oposta à dor – eu quero dizer da noção de prazer – se divide paralelamente entre a ira e a concupiscência, pois o prazer governa da mesma maneira cada uma dessas duas paixões. Todas essas inclinações se encontram na alma, mas não são a alma: antes de tudo, são excrescências  que se prendem à parte pensante  da alma.38 São consideradas como partes da alma porque aí crescem, mas na realidade não pertencem à sua essência.”

“Entretanto vemos, disse eu à virgem, que essas coisas contribuem não pouco para

melhorar as pessoas virtuosas. Com efeito, para Daniel,39 o desejo constituiu motivo de louvor; Fineias aplacou a Deus com a sua ira;40 aprendemos que o temor do Senhor é o início da sabedoria,41 e de Paulo aprendemos que tristeza segundo Deus tem por fim a

salvação;42 o Evangelho nos exorta a desprezar os eventos terríveis;43 e o não possuir temor das adversidades outra coisa não é senão um sinal da audácia, que a sabedoria considera uma qualidade dos homens bons.44 Com tais exemplos, a Escritura demonstra que estas inclinações não devem ser consideradas paixões: com efeito, para a prática da virtude não se poderia recorrer à ajuda das paixões.”

E a mestra me respondeu: “Dou a impressão de ser eu a responsável desta confusão de raciocínios, uma vez que, no meu discurso, não elaborei distinções claras, de modo a dar uma sequência ordenada à minha especulação. Nos limites do possível, pensaremos doravante em fornecer uma ordem à nossa pesquisa, para que semelhantes objeções não tenham mais espaço durante o seu desenvolvimento. Dizíamos que a faculdade de especular, de discernir e de contemplar os seres é aquela própria e natural da alma: graças a essas suas duas funções, esta é capaz de conservar em si a imagem da graça divina. O nosso raciocínio supõe que também a natureza divina – qualquer que possa ser – se encontra empenhada nessas funções, isto é, em vigiar todas as coisas e em discernir o  bem do mal. As faculdades que se encontram justamente no confim (methórios) da alma45 e que, segundo sua natureza, se inclinam para ambos os contrários (assim determinada atitude comporta como efeito ou o bem ou o seu contrário, ou a ira, ou o temor, ou qualquer outro movimento análogo da alma, sem o qual não seria possível discernir a natureza humana), essas são agregadas à alma do exterior, assim o pensamos pelo fato de que, na beleza originária, não se observa nenhuma marca deste gênero.

 

A ordem da aparição dos seres na criação

Façamos este raciocínio como em um exercício de escola, de modo a evitar  os  ataques daqueles que ouvem para caluniar. A Escritura nos ensina que a divindade se pôs a criar o homem segundo certa via e certa ordem. Depois  que o universo se formou –  nos diz a Sagrada Escritura – o homem não nasceu imediatamente sobre a terra, mas foi precedido pelas naturezas irracionais; e estas, por sua vez, foram precedidas pelas plantas.46 Na minha opinião, a Escritura mostra com isso que a força vital se mistura como o corpo segundo determinada ordem: mescla-se nos organismos desprovidos de sensações; em seguida, vai aos organismos dotados de faculdades sensoriais e, enfim,  sobe àqueles dotados de inteligência e de razão.

Por conseguinte, entre os seres, alguns são corpóreos (sōmatikon); outros, inteligentes (noerón).47 Entre os seres corpóreos, alguns são desprovidos de alma (ápsychon);48 outros dela são dotados. Por seres providos de alma entendo aqueles  que são partícipes da vida (tò metéchon zōēs). Entre os seres viventes, alguns são dotados de sensações (aisthēsei); outros delas são desprovidos.49 Além disso, entre os seres dotados de faculdades sensoriais, alguns são racionais (tà mèn logika esti);50 outros,  irracionais  (tà dè áloga).51 Uma vez que a vida dotada de faculdades sensoriais  não pode subsistir  sem a matéria, e a inteligência não pode hospedar no corpo se não se une à faculdade sensorial,52 a formação do homem segundo a história [sagrada] sucedeu em último lugar:

o homem abarca em si mesmo toda forma de vida, aquela que se vê nas plantas e aquela que se vê nos animais irracionais. [O homem] recebeu da vida vegetal a faculdade de nutrir-se e aquela de crescer (essas duas faculdades se encontram também nas plantas: as raízes sugam o alimento, e os frutos e as folhas o expulsam pelo exterior); e herdou dos animais irracionais a faculdade de regular-se com base nas sensações. A faculdade pensante e racional permanece pura de toda mistura e, considerada em si mesma, é  marca distintiva desta natureza. Mas esta sua natureza recebe da vida material a faculdade de atrair as coisas necessárias à sua nutrição, faculdade que, quando se encontra em nós, chama-se apetite. Tal faculdade pertence à forma vegetativa de nossa vida, visto  que nas plantas também podemos ver como impulsos  que, agindo naturalmente, as conduzem a encher-se da nutrição adaptada e ao crescimento. Do mesmo modo, as faculdades próprias da natureza irracional se misturam com a faculdade pensante da alma. Dessas fazem parte a ira,  o medo e todas aquelas que em nós agem  em sentido contrário às primeiras, excetuando a faculdade de raciocinar e de pensar que, como dissemos, é a única a ser superior na nossa natureza uma vez que reproduz a imagem divina. Mas visto que, segundo o raciocínio já feito precedentemente,  a  faculdade racional não pode hospedar-se na vida corpórea se não se une às sensações, e uma vez que, de outro lado, a sensação preexistia na natureza dos seres irracionais, necessariamente a unidade da nossa alma resulta da união também com aqueles aspectos que pertencem à sensação.

 

As paixões, instrumentos para a vontade livre

São esses os movimentos que se chamam paixões (pathē), quando se produzem em nós e que não foram atribuídas à vida humana unicamente em vista do mal; o demiurgo, de fato, seria verdadeiramente responsável pelos males, se fosse ele que tivesse lançado em nossa natureza as forças que conduzem inevitavelmente ao pecado. Ao contrário, segundo o uso que se faz do livre-arbítrio,  tais movimentos da alma  se tornam instrumentos de virtude ou de vício, tal como o ferro, quando recebe a marca determinada pela vontade, pelo artista, assume a forma desejada pelo seu pensamento, tornando-se ou uma espada, ou qualquer outro instrumento do agricultor.

Quando a razão governa, tudo concorre para o bem

Se, portanto, a razão, que é a parte mais alta da natureza humana, conseguisse  dominar esses movimentos que foram introduzidos em nós do exterior  – como o manifestou, de forma enigmática também, a Escritura, que ordena ao homem dominar todos os seres desprovidos de razão – nenhum desses movimentos agiria em nós para servir ao vício: o medo produziria a submissão; a ira, a coragem; a cólera, a cautela; a concupiscência, o prazer divino e puro. Se, ao contrário, a razão abandona as rédeas, deixa-se arrastar pelo cocheiro permanecendo ligada a esse como um auriga, e deixa-se conduzir para onde a leva o movimento irracional dos cavalos emparelhados, então os impulsos se transformam em paixões, como se pode ver também nos animais irracionais. Uma vez que a razão não governa os seus movimentos naturais, os animais ferozes se

destroem reciprocamente, guiados como são pela ira; e os animais de grandes proporções e fortes não tiram nenhum proveito de sua força, mas, sendo desprovidos de razão, tornam-se presas dos seres racionais. A atividade própria da concupiscência e do prazer não se ocupa das coisas mais altas; e nenhuma das faculdades neles presente é conduzida pela razão em vista de um escopo útil. Em nosso caso também, se essas paixões não são guiadas pela razão em direção ao fim justo, mas essas a sobrepujam no comando, o homem cai na mais completa irracionalidade e sob o impulso de tais movimentos passionais de ser pensante e semelhante a Deus se transforma em animal”.

Valor respectivo do silogismo e da Escritura

E eu, aprovando plenamente essas palavras, comentei: “A todo homem que seja provido de razão este discurso tão simples, desprovido de artifícios e consequente, pareceria suficiente, na medida em que dá a impressão de ser justo e de  jamais  abandonar a verdade. Mas, enquanto aqueles que amam as demonstrações artificiosas pensam que somente o silogismo é capaz de convencer, a nós, ao contrário, mais do que qualquer argumentação feita com arte, parece convincente a revelação produzida pelos ensinamentos da Escritura: portanto, eu penso que é preciso procurar se o ensinamento inspirado por Deus concorda com tudo quanto disseste”.

E ela disse: “E quem poderia negar que a verdade é resposta somente naquilo sobre o qual está impresso o selo do testemunho escriturístico? Se é preciso fazer  recordar alguma passagem do Evangelho  para defender esta doutrina,  não é inoportuno examinar a parábola da cizânia. O patrão da casa (nós somos justamente a casa) semeou a semente boa; mas o seu inimigo, tendo esperado o momento em que os servos dormiam, semeou juntamente às sementes boas aquelas que são más, lançando a cizânia no  meio  do próprio trigo. E as sementes cresceram juntas, pois não era possível que a semente depositada com o próprio trigo não crescesse com ele. O superintendente nos trabalhos agrícolas, uma vez que os dois  tipos  opostos de plantas cresceram com as raízes emaranhadas entre si, proíbe aos servos de arrancar a erva má, a fim de evitar que,  com  o elemento estranho, não seja arrancado também aquele que é bom. Na minha opinião, são tais movimentos da alma que mostra o texto através das boas sementes, movimentos que cada um, se fosse cultivado em vista do bem, produziria infalivelmente em nós o  fruto da virtude. Mas visto que juntamente a esses é semeado o erro relativo  ao discernimento do bem, e o único princípio verdadeiramente bom por natureza é obtido pelo fruto do engano que cresce ao mesmo tempo, a faculdade  concupiscível não se  volta e não vai em direção ao bem natural em vista do qual foi semeada em nós, mas transforma o fruto em um ser animalesco e irracional representado pela incapacidade de discernir o bem, uma vez que é justamente em direção a esse que a faculdade concupiscível dirige os seus impulsos; ao mesmo tempo também a semente da ira não dê azo à coragem, mas faça tomar as armas para combater contra pessoas da nossa estirpe;  a força do amor se afasta das coisas inteligíveis, enlouquecendo para além de  toda medida no gozo das coisas sensíveis; e analogamente os outros impulsos fazem florescer os frutos maus no lugar dos bons.

Conduta lógica do sábio agricultor

Eis por que o sábio agricultor deixa permanecer junto à semente boa o fruto [mau] plantado junto dela, por precaução, para nos evitar ser despojados do princípio melhor [coisa que, com efeito, aconteceria] se a concupiscência fosse erradicada completamente ao mesmo tempo que o fruto mau. Se, com efeito, a nossa natureza é assim tratada, que coisa nos conduziria à união com os bens celestes? E o amor fosse destruído, de que modo podermos unir-nos a Deus? E se a ira se extinguisse, que arma poderíamos usar contra o adversário? O agricultor deixa, portanto, permanecer em nós as sementes espúrias, não para que dominem para sempre sobre as boas, mas a fim de que seja a própria terra (assim se chama metaforicamente o nosso coração) desseque uma parte dos frutos maus e torne os outros florescentes e ricos de frutos graças à sua força natural, na qual é representada a razão. Mas, se isto não se produz, ele reserva ao fogo a divisão da colheita.

Quem, portanto, faz um justo uso dessas faculdades, acolhendo-as em si mesmo sem tornar prisioneiras delas, é como um rei que se serve da ajuda dos seus muitos súditos, realiza mais facilmente aquilo que é o fim da virtude. Quem, ao contrário, cai sob seu domínio, como acontece quando os servos se revoltam contra o seu patrão; quem se  torna escravo deles, submetendo-se de modo ignóbil às suas loucuras dignas dos servos; quem se torna propriedade daqueles que deveriam ser-lhes submissos assim como quer a natureza, não pode senão ser arrastado em direção àquilo para o qual o impele a força de quem o comanda. Nessas condições, não podemos dizer que tais faculdades sejam em si mesmas virtudes ou vícios: uma vez que se trata de movimentos da alma, a sua bondade ou maldade depende somente da vontade de quem as utiliza. Quando esses movimentos se voltam para o bem, [68] eles se tornam motivo de louvor, como acontece ao desejo de Daniel, à ira de Fineias, e à dor de quem chora justamente. Se, ao contrário, se mostram inclinados ao mal, tornam-se paixões e recebem este nome”.

 

III.    CORPO E ALMA DEPOIS DA MORTE: PREPARAÇÃO À DOUTRINA DA RESSURREIÇÃO

O Hades é uma condição de vida, mas não um lugar físico. A interpretação da passagem de Fl 2,10

A alma, depois desta vida: o Hades

Fornecidas essas explicações detalhadas, interrompe-se e concede uma breve pausa  ao seu discurso: e eu resumi em meu pensamento o que tinha sido dito e retornei ao raciocínio precedente, no qual fora demonstrado que não é impossível que a alma se encontre nos vários elementos depois da dissolução do corpo. E eu perguntei à nossa mestra: “Onde se encontra o Hades, este nome do qual tanto se fala, termo tão difundido na vida corrente, e também nas obras dos pagãos e nas nossas Escrituras? Todos pensam que as almas migram para lá como se fosse uma espécie de receptáculo, uma vez abandonado este mundo. Pois não se poderia designar os elementos sob o termo Hades”.

O Hades: um falso problema

E a mestra me respondeu: “É claro que não prestastes muito  atenção ao meu  discurso. Quando falei da transferência da alma do visível ao invisível,53 eu pensei não  ter deixado de lado a questão do Hades. Na minha opinião, as obras pagãs e a Escritura divina com o termo Hades – no qual segundo dizem se encontrariam as almas – não procuram designar outra coisa senão a passagem do visível ao invisível”.

“E como podem alguns – perguntei-lhe – chamar com este nome um lugar subterrâneo, e acreditar que esse hospede as almas, quase como se fosse um lugar capaz de receber essas naturezas e de arrastá-las para si depois que se desprendem da vida humana?” 54

O Hades não é um lugar: prova cosmográfica

“Mesmo admitindo que o teu discurso seja verdadeiro – retomou a mestra –, o nosso raciocínio não será perturbado por tais suposições. Uma vez que a esfera celeste é contínua em si mesma e sem fraturas e compreende tudo na própria órbita, enquanto a terra e tudo o que a rodeia se encontram suspensas em seu centro e todo movimento circular se faz em torno de um ponto estável e sólido, é necessário supor que tudo o que pode acontecer a cada um dos elementos na parte superior da terra existe também na parte oposta: a substância que gira em torno de toda a sua massa é sempre a mesma. Quando o sol aparece, a sombra da terra cobre a sua parte inferior, uma vez que a sua forma esférica não pode ser abarcada ao mesmo tempo em todo ponto de seu globo pelo feixe dos raios solares: acontece inevitavelmente que, quando o sol atinge com os raios uma parte da terra e se encontra sobre um ponto da esfera [terrestre] que é como o  centro de um diâmetro, a extremidade oposta deste diâmetro está na escuridão. A sombra gira sempre, portanto, da parte oposta àquela dos raios solares contemporaneamente ao mover-se do sol, de modo que seja a parte superior, seja a parte interior da terra se encontram na luz e na sombra alternadamente e em igual medida. Do mesmo modo é evidente que não se pode negar a presença no outro hemisfério terrestre de todos os outros elementos que se encontram no nosso. Uma vez que os elementos abarcam de modo único e igual toda parte da terra, eu penso que não se devem nem combater nem aprovar as objeções levantadas sobre esse problema, quando dizem que seria necessário pensar que às almas libertas do corpo foi reservada ou esta região ou uma região subterrânea; pois enquanto a objeção não alterar o nosso principal assunto no tocante à existência das almas depois da vida na carne, não haverá discussão sobre o lugar em  nossa exposição, uma vez que compreendemos que a posição em um lugar convém somente aos corpos; a alma, ao contrário, sendo incorpórea, não está obrigada pela própria natureza a permanecer prisioneira em lugares determinados.”

 

A menção dos lugares subterrâneos em S. Paulo

E eu perguntei-lhe: “Que responderias então se o seu opositor citasse a passagem do Apóstolo onde está dito que todas as criaturas racionais esperarão o patrão de todas as

coisas na restauração universal (apokatastásei pantos)?55 Na epístola aos Filipenses, o Apóstolo recorda também aos espíritos subterrâneos lá onde diz: “Diante dele  se dobrarão os joelhos dos seres celestes, terrestres e subterrâneos”.56

E a mestra responde: “Mesmo quando ouvimos quem diz essas coisas, continuamos a crer em nosso ensinamento: o nosso contraditor também concorda conosco sobre a existência da alma; no que diz respeito ao lugar, como disse antes, não levantamos objeções”.

“Mas àqueles, portanto, que procuram saber que coisa quis dizer o Apóstolo com  estas palavras – insisti eu – que coisa se poderia dizer, se se prescinde do significado espacial?”

Exegese de Fl 2,10

E a mestra me explicou: “Não me parece que o Apóstolo divino, distinguindo a substância intelectual segundo os lugares, tenha falado de lugares celestes, terrestres e subterrâneos. Três são os estados das naturezas racionais: existem as naturezas às quais toca, desde o início, uma vida incorpórea, e que denominamos anjos; existem  aquelas  que se uniram à carne, e que denominamos homens; e existem aquelas que com a morte se libertam do corpo. Na minha opinião, o Apóstolo divino, levando em conta, na sua profunda sabedoria, essas três condições que se observam nas almas, quis aludir ao acordo no bem que um dia se estabelecerá entre todas as naturezas racionais. Ele  chamou celestes as naturezas angélicas e incorpóreas; terrestres, aquelas unidas ao corpo; subterrâneas, aquelas que se libertaram do corpo, ou os outros seres racionais, diversos daqueles já enumerados: a nós pouco importa se chamam-se demônios, ou espíritos, ou de outro modo análogo.

 

O demônio, ser “subterrâneo”

A opinião comum e a tradição escriturística, de fato, nos convenceram acerca da existência de naturezas incorpóreas que contrariam o bem e que, abandonada voluntariamente a condição mais elevada, prejudicam a vida humana afastando-a do bem e produzindo nela o seu contrário. Diz-se que o Apóstolo as arrolou entre os seres subterrâneos. Com essas palavras ele alude ao fato de que, uma vez destruído o mal depois de longos períodos de tempo, não permanecerá senão o Bem. De fato, essas criaturas57 também reconheceram concorde e unanimemente o senhorio de Cristo. “Nessas condições, portanto, ninguém poderia mais nos forçar a pensar em um lugar subterrâneo quando se fala da região situada sob a terra, visto que o ar circunda por toda parte da terra em medida igual, de modo que não se pode conceber uma parte da terra privada deste invólucro.”

SOBREVIVÊNCIA E RELAÇÃO ALMA-CORPO

 

Recordação das provas acerca da sobrevivência da alma e a questão do “como” desta sobrevivência

Após esta explicação de nossa mestra, calei-me por um instante e retomei: “Os resultados da pesquisa não me deixam ainda satisfeito: o meu pensamento duvida ainda a propósito do que foi dito, e eu peço novamente, portanto,  para retornar o discurso sobre o mesmo tema, deixando de lado os pontos em que já estamos de acordo. Na minha opinião, aqueles que não são muito refratários deixaram-se convencer demasiado através do que foi dito: não pensam mais certamente na destruição e no aniquilamento da alma depois da dissolução dos corpos, e não sustentam mais que essa não se pode encontrar  em nenhum ser tendo uma natureza diversa da substância dos elementos. Mesmo que a natureza inteligente e imaterial não possa estar em harmonia com esses últimos, nada impede de hospedar-se neles, e esta concepção nos é garantida de duas maneiras: de um lado, durante esta vida, a alma se encontra nos corpos, mesmo sendo diverso desses em sua essência; de outro lado, o nosso raciocínio demonstrou que a natureza divina, que é absolutamente diversa da essência sensível e material, se difunde, porém, através de cada ser e, uma vez que ela está mesclada com o universo, mantém os seres na existência; em consequência, não se pode pensar que a alma permaneça fora dos seres quando, abandonada a vida que se observa nas espécies particulares, transmigra em direção àquilo que é invisível. Mas como pode acontecer isso depois que a espécie particular foi destruída pela dissolução dos elementos, se é própria a esta espécie que se une à alma, quando a união dos elementos assume, em virtude da sua mistura recíproca, uma forma diferente de cada um desses? Qual sinal distintivo seguirá a alma, quando aquilo que se conhece dela não subsistir mais?”

E ela, depois de uma breve pausa, disse: “Que me seja concedida a possibilidade de dar um exemplo para esclarecer esta questão, mesmo se aquilo que digo possa aparecer absurdo. Suponhamos que, na pintura, seja possível não somente misturar entre si as cores contrárias, assim como têm o costume de fazer os pintores quando representam figuras semelhantes, mas também separá-las depois que foram misturadas, e restituir a cada uma delas a sua tintura natural. Se, portanto, o branco, o preto, o vermelho, o dourado e as outras cores que entram em uma mistura para reproduzir determinado objeto fossem separadas de tal mistura e se encontrassem isoladas, o pintor, em nossa opinião, conheceria sempre as várias espécies de cores: ele não se esqueceria nem do vermelho nem do preto se, descoloradas pela sua mistura umas com as outras, essas  cores retornassem à sua tintura natural. Recordando-se do modo pelo qual as cores se misturam entre si, ele sabe qual cor,  unindo-se a uma outra, produz uma outra determinada cor e como certa cor, separando-se de uma outra, volte a assumir a própria tintura. Se, pois, deve refazer um trabalhado igual misturando as cores, isto lhe parece mais fácil, graças à experiência precedente.

Se existe verdadeiramente, disse ela, alguma lógica nesse exemplo, devemos examinar o problema. No lugar da arte da pintura, pensemos nos elementos; e suponhamos que a mistura das várias e diversas cores e o seu retorno à sua condição originária,  à maneira  de uma hipótese, representem a reunião e a separação dos elementos. Como no exemplo dado o pintor não ignora a tintura originária depois que a mistura reassume o próprio esplendor e reconhece o vermelho, o preto e as outras cores que, unindo-se com as

outras, reproduziram uma figura – ele sabe bem como cada uma dessas estava  na mistura, como está agora em seu estado natural, e que coisa se tornará se as cores se misturarem novamente entre si de modo semelhante; assim também a alma, mesmo depois de sua dissolução, conhece as propriedades naturais dos elementos que se unem para formar o corpo com o qual ela veio a existir; e mesmo se a sua natureza os afasta  uns dos outros por causa das suas qualidades contrárias, impedindo cada um deles de se misturar com o seu contrário, a alma permanece, não obstante, junto de cada um deles, ela que, por seu poder de conhecimento, se junta àquilo que lhe é próprio, e permanecerá junto dele até que se faça novamente a reunião em um mesmo ser dos elementos separados, em vista de reconstituir o que tinha sido dissolvido: este processo é a ressurreição (anástasis), e assim é chamado”.

 

A ressurreição supõe a reconstituição a partir dos mesmos elementos

E eu comentei: “Parece-me que tenhas agora defendido de um modo particular a doutrina da ressurreição. Estas tuas palavras podem induzir gradualmente os inimigos da fé a não considerar como coisa impossível que os elementos se reúnam novamente uns com os outros e que seja perfeitamente constituído o mesmo homem de antes”.

“Dizes a verdade – respondeu a mestra, pois podemos entender aqueles que levantam objeções contra este ensinamento dizer isto: se no universo a dissolução dos elementos comporta o retorno ao semelhante, como é possível que o quente de determinado corpo, depois de ser misturado [com o quente] do universo, se separe novamente daquilo que  lhe é semelhante para constituir de novo o homem que é recriado? Se não reaparecem com exatidão os elementos particulares [de um corpo], e se na composição [do novo corpo] entra um elemento do mesmo gênero, mas não precisamente aquele de antes, nasce um corpo completamente novo, e este processo não se pode mais chamar ressurreição, mas criação de um homem novo.  Mas,  para retornar a ser aquele de antes, o homem deve ser em tudo o mesmo, retomando a sua natureza originária em todas as partes dos seus elementos”.

“Para combater esta objeção, como eu disse, basta a nossa doutrina sobre a alma: mesmo depois da dissolução do corpo, a alma permanece junto a esses elementos nos quais desde a origem ela estava inserida. Essa é como que a guardiã dos próprios elementos: graças à sutileza e à mobilidade da sua inteligência, não os abandona enquanto se unem àqueles do mesmo gênero, e não consente nenhum erro, não obstante a sutileza deles. Ao contrário, na dissolução acompanha os próprios elementos enquanto se reúnem com os seus semelhantes, e, enquanto esses se difundem no universo, não perde o seu vigor, mas ela permanece sempre neles, em qualquer lugar e quaisquer que sejam as disposições da natureza. Admitamos que a potência que governa todo o universo dê aos elementos dissolvidos a oportunidade de reunir-se novamente; como as diferentes amarras (schoinoi diáphoroi) ligadas a uma só extremidade seguem todas juntas e ao mesmo tempo aquele que as tira, assim também a única potência da alma, quando arrasta consigo todos juntos os diversos elementos, recompõe com a reunião deles a cadeia que forma o nosso corpo: cada elemento se liga de modo apropriado à sede originária e habitual, e ocupa um lugar conhecido”.

“Mas eis ainda um exemplo, disse  nossa mestra, que poderia a justo título ser acrescentado ao nosso exame, com o objetivo de demonstrar que não é de fato difícil  para a alma distinguir os elementos que lhe pertencem daqueles que lhe são estranhos. Suponhamos que um oleiro tenha à sua disposição grande quantidade de argila, da qual uma parte já foi transformada em utensílios domésticos, enquanto a outra é destinada a sê-lo, e que os utensílios não tenham todos a mesma forma, mas que um seja uma jarra, um outro seja uma ânfora, um outro seja prato, ou escudela, ou um outro utensílio adaptado ao uso; e façamos a hipótese de que todos esses objetos não sejam propriedade de uma só pessoa, mas que cada um tenha o seu dono. Assim, enquanto permanecem sólidos, eles podem ser bem reconhecidos pelos seus proprietários; mas também se se quebram, quem os possui pode sempre reconhecê-los segundo os fragmentos e pode sempre [ver] qual pedaço provém da jarra e qual do cálice. Mesmo se os pedaços fossem misturados com a argila ainda não trabalhada, de modo ainda mais seguro poder-se-iam distinguir os objetos trabalhados pela argila informe. Do mesmo modo, cada homem é como um utensílio que a combinação dos vários elementos forma a partir da matéria comum: a sua forma particular é a causa da sua grande diferença em relação aos seus semelhantes. Se ele se decompõe, a sua alma, proprietária  do utensílio,  é sempre capaz de reconhecê-lo a partir mesmo dos restos: essa não se separa daquilo que lhe pertence nem se os pedaços se misturam entre si nem se se unem à matéria não ainda trabalhada que está à base dos elementos, mas conhece sempre a forma originária do próprio objeto; e também depois que se dissolveu, segundo os sinais que permaneceram nos restos, ela não se engana acerca daquilo que lhe é próprio.”

PARÁBOLA DE LÁZARO E DO RICO

Da parábola de Lázaro e do rico mau nasce uma objeção: as penas dos infernos na parábola de Lázaro; princípios metodológicos e metafísicos e interpretação alegórica.

Eu aprovei este discurso, tendo-o encontrado adaptado e apropriado ao nosso  assunto, e, portanto, observei: “É perfeito dizer essas coisas e nelas acreditar; mas se alguém, para criticá-las, nos citasse  a parábola do Hades que se encontra no Evangelho do Senhor58 e nos fizesse observar que não concorda com o nosso exame, como  é preciso preparar-se para responder?”.

 

Esta parábola exige uma interpretação figurada

E a mestra assim se expressou: “A palavra do Senhor, mesmo expondo esta parábola de modo material, semeia, porém, nesta muitos princípios que são capazes de conduzir a uma compreensão mais sutil aquele que ouve com espírito crítico. Quem separa com um grande abismo o mal do bem, quem apresenta o atormentado no ato de ter necessidade  de uma gota de água levada com um dedo, quem supõe que o seio do patriarca seja o lugar de repouso daquele que foi atormentado nesta vida, quem narra que, antes desses acontecimentos, todos os dois morreram e foram sepultados, esta palavra não afasta

pouco de uma interpretação superficial aquele que segue as suas palavras de modo inteligente. Que olhos levanta, de fato, no Hades o rico, se ele deixou na tumba aqueles corpóreos? E como a chama é sentida por quem não tem corpo? Que língua deseja refrescar com uma gota de água, se não possui mais aquela corpórea? Qual é o dedo que lhe leva a gota de água? E qual é o seio que lhe serve como lugar de repouso? Se o corpo se encontra na tumba e se a alma não se encontra no corpo e não é constituída de fragmentos, é inútil procurar adaptar à verdade a interpretação superficial da parábola; [à verdade se chegaria] somente se se desse a cada parte da narração uma interpretação  mais elevada. Em consequência, o abismo que proíbe todo contato com aqueles que não podem ter relações não seja julgado como um abismo especial: àquilo que é incorpóreo e inteligente não causa fadiga atravessar um abismo, por maior que seja, uma vez que  aquilo que é inteligente por natureza é capaz de chegar, instantaneamente, lá  onde deseja”.

E eu lhe perguntei: “Que podem ser, portanto, o fogo, o abismo e todas as outras  coisas mencionadas, se não se trata daquilo de que no texto se fala?”.

“Parece-me, disse ela, que o Evangelho através de cada um desses termos aluda às doutrinas que fazem parte da questão sobre a alma. Quando o patriarca diz ao rico “tivestes na vida corpórea a tua parte de bens”,59 quando, analogamente, diz a propósito do pobre: “Ele também realizou na vida a sua tarefa, o de receber os males”;60 quando acrescenta, a propósito do abismo, que esses são separados um do outro, parece aludir com essas palavras a uma importante doutrina. Na minha opinião, trata-se da seguinte doutrina: a vida humana era simples, enquanto se espelhava somente no bem e não misturava com o mal. Dessa minha opinião é testemunha a primeira lei de Deus, que concedeu ao homem desfrutar sem limites dos bens do paraíso e o manteve distante daquilo que, na sua natureza, era formado por uma mistura de dois elementos contrários, o mal e o bem: ao transgressor impôs a morte como pena.61 Mas o homem, voluntariamente, em um movimento de autonomia,  abandonou a sorte que não conhecia o mal e abraçou a vida na qual se misturavam os dois princípios opostos. Entretanto, a Providência divina não privou a nossa estultícia da possibilidade de corrigir-se; mas visto que a morte decretada aos transgressores da lei seguiu-se necessariamente, ela dividiu em duas partes a vida humana: aquela deste mundo, baseada na carne; e aquela futura, privada do corpo. Às duas partes não determinou uma duração igual: a primeira foi delimitada por um período de tempo mais breve; a segunda foi alongada até a eternidade. Impelida por seu amor pelos homens, a Providência deu a cada um de nós a  possibilidade de obter, no período que se deseja, ambas as coisas (eu falo do bem e do mal): ou nesta vida breve e caduca, ou nos séculos sem fim, que têm por limite o infinito.62

 

Duas categorias de homens…

Uma vez que do bem e do mal se fala de modo equívoco, e de ambos se têm dois conceitos, dependentes da inteligência e das sensações, alguns julgam um bem aquilo que

parece agradável às sensações, enquanto outros pensam que seja um bem e se possa chamar com este nome somente aquilo que o pensamento consegue contemplar. Quem tem uma razão pouco exercitada e incapaz de olhar as coisas mais elevadas, sob  o impulso da voracidade consuma na vida corpórea aquela parte de bem que é devida à natureza material, mas nada se reserva para a vida futura; quem, ao contrário, regula a própria vida segundo um modo de raciocinar prudente e temperante é atormentado nesta breve existência por fatores que causam dor na esfera sensível, mas conserva o verdadeiro bem para a vida futura: consequentemente, para tal tipo  de homem a condição melhor dura para a vida eterna.

É, portanto, nisto que consiste, na minha opinião, o abismo: este não é produzido pelo deslocamento da terra, mas pelo nosso juízo durante esta vida, dividido em caminhos opostos. Quem escolhe uma vez por todas os prazeres desta vida e não cura a própria estultícia com o arrependimento, se torna inacessível a sede dos bens e torna-se artífice, contra si mesmo, de um destino inelutável do qual não pode mais fugir, semelhante ao abismo enorme e insuperável. Por essa razão, parece-me que a parábola chame seio de Abraão a condição melhor da alma, na qual faz repousar quem praticou a virtude da paciência: segundo o relato [sagrado], este patriarca foi o primeiro dos homens de outrora a preferir a esperança dos bens futuros ao gozo daqueles presentes; despojando-se de todos os bens no meio dos quais vivia, tinha sua morada em terras estrangeiras e que, através do sofrimento do momento, procurava atingir a bem-aventurança que ele aguardava. Como chamamos impropriamente kolpon63 determinada parte de mar, assim, na minha opinião, a parábola, falando do seio [de Abraão], alude aos bens incomensuráveis: neste seio (kólpōi) bom – como se fosse um porto ao reparo das tempestades – farão aportar as suas almas todos aqueles que percorreram esta vida virtuosamente, quando se desprenderão deste mundo. Para os outros, a privação dos  bens aparentes torna-se uma chama que consome a alma: esta tem necessidade, para seu reconforto, de uma gota de água proveniente do oceano dos bens que banham os santos,  e ela não consegue obtê-la. Se, pois, consideras a língua, o olho e o dedo de quem se fala no diálogo entre os dois espíritos incorpóreos, deves admitir  que esses concordam com  as conjecturas feitas por nós a propósito da doutrina sobre a alma: bastará a ti pensar no sentido das palavras.Como a reunião dos elementos produz a substância do corpo, assim é natural que a natureza das suas várias partes seja formada à base da mesma causa. A alma, se continua a permanecer junto dos elementos do corpo mesmo quando se misturam com aqueles do universo, não somente reconhece todos os elementos que concorrerão para formar o conjunto do composto permanecendo em cada um deles, mas não ignora tampouco a constituição peculiar de cada uma das partes: ela sabe bem de quais partes presentes nos elementos são formados os nossos membros.

Não é, portanto, improvável que a alma, se está presente em todo o conjunto dos

elementos que compõem o corpo, se encontre também em cada um desses: e assim, se alguém considera esses elementos no quais os membros em particular do corpo são  inatos graças a esta potência,64 e compreendendo, portanto, a Escritura se refere justamente à alma quando fala do dedo, dos olhos,  da língua,  e de todos os demais

órgãos do corpo depois da dissolução do composto, indicando que estão presentes nela, não se afastará da verossimilhança. Se, portanto, cada detalhe em particular afasta a  mente de uma inteligência em sentido material, é natural supor que o Hades também, que acabamos de mencionar há pouco, não é um lugar, mesmo sendo chamado assim, mas uma condição de vida invisível e incorpórea, na qual nossa alma leva sua existência, segundo o que nos ensina a Escritura.

APEGO À VIDA TERRESTRE

O apego à vida carnal…

Mas uma outra doutrina também da narração do rico e do pobre, nos é ensinada, estreitamente afim ao nosso objeto de pesquisa. Segundo a narração, aquele que está submetido às paixões e que ama a carne, depois de ter visto que sua infelicidade é sem escapatória, preocupa-se com os seus poucos parentes ainda vivos sobre a terra;  e embora Abraão lhe diga que a vida daqueles que vivem  no corpo não é negligenciada  pela Providência, enquanto esses têm à disposição a Lei e os Profetas para conduzir-lhes pela mão, o rico continua a insistir, para que a sua mensagem se torne convincente por  um fato prodigioso: essa deveria ser anunciada por um morto ressuscitado.”

“Qual é, portanto, este ensinamento?”, perguntei-lhe. “A alma de Lázaro – explicou- me – está toda presa aos bens presentes, e não se volta para aquilo que ela abandonou; o rico, ao contrário, mesmo depois da morte está apegado  à vida  da carne como a um  visgo (ixos); mesmo cessando de viver, ele não se purificou inteiramente: a carne e o sangue ocupam ainda o seu pensamento. As palavras com as quais suplica [Abraão], para que sejam libertados dos males aqueles aos quais está unido pelos laços de família, mostram que não se libertou ainda da afeição pela carne. Na minha opinião, o Senhor  com esta parábola nos ensina que aqueles que vivem na carne devem separar-se e libertar-se, o mais possível, com a sua vida virtuosa, da afeição por ela. Só assim, depois da morte, não teremos necessidade de uma segunda morte que nos purifique dos restos  do laço (kóllēs) carnal; e somente assim, rompidos todos os liames em torno da alma, o seu curso em direção ao bem se tornará leve e livre,65 uma vez que nenhuma  dor corpórea a arrastará mais em direção a si mesma.

Pois se alguém torna, completamente e em todas as coisas, carnal o próprio pensamento, absorvendo toda a iniciativa e toda a atividade de sua alma nas vontades da carne, então, mesmo despendido da carne, não se separa das paixões carnais; mas, da mesma maneira que aqueles que detêm por muito tempo em lugares mais asquerosos não conseguem libertar-se do mau odor que atraíram para si com a sua longa permanência nesses [lugares] nem mesmo quando se transferem para um lugar com ar mais respirável, assim também os amantes da carne (philosárkous) não podem não arrastar consigo alguma coisa do mau odor carnal quando passam à vida invisível e toda pura; uma vez que a sua alma, tendo se tornado mais  material por esta circunstância, a dor que experimenta se faz sentir ainda com mais força. Com tal suposição concorda aquilo que alguns afirmam: vê-se frequentemente, em torno às tumbas dos cadáveres, fantasmas

dos mortos, semelhantes a sombras.66 Se este evento se verifica verdadeiramente, é um sinal de um apego da alma à vida carnal que ultrapassa a justa medida. Esta alma não deseja, portanto, purificar-se e voar nem mesmo quando se vê arrancada da carne, e não consente sua total transformação em uma forma invisível: ao contrário, permanece na forma corpórea mesmo depois de sua dissolução. Mesmo estando fora do corpo, vítima do desejo que experimenta por ele, continua a vagar e a errar nos lugares em que reside a matéria”.


IV.  A ASSIMILAÇÃO AO DIVINO E A PURIFICAÇÃO DA ALMA DEPOIS DA MORTE

Depois de uma breve pausa, retornei com o pensamento ao que fora dito e observei: “Parece-me que desse discurso brote uma conclusão contrária ao exame concernente às paixões. Se devemos pensar que esses movimentos da nossa alma são produzidos por causa de nosso parentesco com os animais irracionais – o nosso discurso os enumerou precedentemente: trata-se da ira (thymón), do medo (phóbon), do prazer (hēdonēn), do desejo (epithymían] e de outras coisas semelhantes; se afirmamos que o bom uso de tais movimentos produz a virtude, enquanto de seu uso mau nasce o vício; se acrescentamos que cada um dos outros movimentos contribui para a vida virtuosa, uma vez que é próprio do desejo que nos conduz para Deus e nos arrasta de baixo para Ele como se fosse uma cadeia, parece-me que o discurso [que agora fizeste] está em contraste com o nosso assunto”.

“Como tu dizes isto?”, perguntou-me. “É que – expliquei-me – se todo movimento irracional se apagar em nós depois da purificação, não teremos mais nem mesmo a faculdade concupiscível; e se esta não existir mais, não existirá tampouco o desejo das coisas mais elevadas: na alma não se encontrará mais o movimento que desperta nela o desejo dos bens.”

 

A atração exercitada pelo Bem e a assimilação a Deus na apátheia. O ágape, único liame entre a alma e Deus, não é uma paixão

“Mas contra esta objeção, disse ela, podemos dizer o seguinte: a capacidade de contemplar e a de distinguir fazem parte do elemento da alma que é semelhante a Deus, uma vez que é justamente graças a elas que nós conseguimos compreender o divino. Se, portanto, a nossa alma consegue libertar-se de todo liame com as paixões irracionais ou nesta vida graças ao exercício ou por meio da purificação futura, esta não encontra mais nenhum obstáculo na contemplação do Belo. O Belo é capaz, segundo sua natureza, de atrair de algum modo todo aquele que o contempla. Se, portanto, a alma se purifica de todo vício, ela permanece no Belo. E o Belo é por natureza o divino: é a este que a alma se une graças à própria pureza, ligando-se àquilo que lhe é aparentado.67  Se,  portanto, isto acontece, o movimento dependente do desejo que nos conduz em direção ao Belo não é mais necessário. Só quem nas trevas deseja a luz; se, porém, quem vier à luz, ao  seu desejo sucederá o gozo, e a possibilidade de desfrutar o desejo estéril e inútil.

Consequentemente, se a alma se encontra libertada desses movimentos, não recebe nenhum dano no gozo do bem; essa se volta para si mesma, conhece exatamente a própria natureza, sendo capaz de ver o modelo através da própria beleza que funciona como espelho e imagem. Podemos dizer com razão que a perfeita semelhança com Deus se verifica quando a nossa alma  procura imitar a substância transcendente (tēn hyperkeiménēn ousían). A natureza que está acima (hyperánō) de todo pensamento (noēmatos), e que se encontra longe das realidades que se observam em nós,  conduz  uma vida de toda diversa e que difere de nossa maneira de viver agora na existência.

 

Esperança e recordação na vida do homem

Uma vez que a nossa natureza se encontra sempre em movimento, nós, homens, nos deixamos arrebatar pelo impulso de nosso arbítrio: se assim podemos dizer, a parte anterior da nossa natureza não se encontra nas mesmas condições da parte posterior.68  De fato, enquanto a esperança guia o seu movimento para o futuro, é a recordação que acolhe o movimento direto da esperança. Se a esperança guia a alma em direção à verdadeira beleza, o movimento da nossa decisão deixa na recordação um vestígio radiante; se, ao contrário,  o livre-arbítrio  erra acerca do bem porque a esperança engana a alma com uma beleza só aparente, a recordação resultante disto então se torna sentimento de vergonha. Produz-se assim na alma uma luta interior: a recordação combate a esperança que conduziu mal o livre-arbítrio. Esta situação é ilustrada claramente pela vergonha: a alma experimenta remorso por aquilo que aconteceu, ela é golpeada pelo arrependimento como por um flagelo, atacada por um impulso irrefletido, e contra a dor que lhe faz sofrer chama em ajuda o esquecimento.

Mas a nossa natureza, não possuindo o Belo, aspira sempre por aquilo que lhe falta; e  é justamente o desejo daquilo que lhe falta que está na origem da concupiscência  da  nossa natureza, quer essa se engane acerca do belo por sua incapacidade, quer também obtenha aquilo que é bom obter.

 

Em Deus, nem esperança nem recordação

Mas a natureza que é superior a todo pensamento relativo ao Bem (hypérchousa pasan agathēn énnoian) e que transcende toda potência (hyperkeiménē dynámeōs), não tendo necessidade de nenhuma das coisas que se podem pensar a propósito do Bem, é a plenitude dos bens, e não se encontra na condição de beleza como se dela  fosse  partícipe; ao contrário, é ela mesma a essência do belo, qualquer que possa ser esta  beleza na representação da nossa mente: por isso, esta natureza não admite em si nem mesmo o impulso da esperança, que opera só em função daquilo que não está presente. Por que então se deveria esperar naquilo que já se possui?, diz o Apóstolo.69 No conhecimento do seres, ela não tem necessidade mais da atividade da memória, pois aquilo que se vê não tem necessidade de ser recordado.

Uma vez que a natureza divina (theía physis) está acima de todo bem,70 e o Bem é necessariamente o amigo do Bem, esta [natureza], vendo a si mesma, deseja aquilo que

possui e possui aquilo que deseja; não admite em si nenhuma coisa externa e nada se encontra fora dela, senão o mal (hē kakía) somente, cuja existência – mesmo que pareça absurdo dizê-lo – consiste no não-ser. Com efeito, não há outra gênese do mal senão a privação do ser. Aquilo, ao contrário, que é verdadeiro ser, corresponde à natureza do bem; isto, portanto, que não se encontra no ser se encontra inteiramente no não-ser.71

 

Pelo amor, a conformação a Deus exclui o desejo

Quando, portanto, a alma se desvencilha de todos os movimentos da própria  natureza, torna-se semelhante a Deus; superado todo desejo, ela vem a encontrar-se  nesse estado para o qual até então a erguia o próprio desejo, e não concede mais em si nenhum lugar nem à esperança nem à recordação, enquanto agora possui aquilo em que antes esperava. Toda absorta no gozo dos bens, ela elimina toda recordação do próprio pensamento; assumida uma forma baseada nas propriedades da natureza divina, imita a vida superior e, portanto, nada lhe falta senão a disposição para amar, que por sua natureza se apega ao belo: o amor consiste justamente nisto, no apego profundamente enraizado àquilo que lhe é caro. A alma, portanto, quando se torna simples, uniforme e exatamente semelhante a Deus, encontra aquele Bem que é verdadeiramente simples e imaterial, o único bem que é verdadeiramente digno de ser amado e desejado; ela  se  junta a ele e se mistura intimamente com ele pelo movimento e pela ação do amor, modelando sua própria forma segundo o que ela atinge e encontra a cada instante; ela torna-se, pela semelhança ao bem, isto  justamente que é a natureza mesma do ser ao  qual ela participa; e como nele não há desejo visto que não lhe falta absolutamente nenhum bem, deve ser lógico que a alma também, tendo chegado a esse estado onde a necessidade não existe, rejeita para longe de si todos os movimentos e as atitudes baseadas na concupiscência, que podem subsistir somente quando falta aquilo que se deseja.

 

Junto de Deus, somente o amor permanece e invade tudo

Deste ensinamento, o divino Apóstolo também nos mostrou o caminho, quando anunciava por antecipação uma cessação e uma diminuição de tudo o que em nós, agora, tende com esforço a um bem maior, ao passo que para o amor somente ele não encontra limite: As profecias, diz ele, desaparecerão, as ciências cessarão, mas o amor não passará jamais,72 o que significa dizer que ele é sempre o mesmo. E mesmo afirmando que a fé e a esperança permanecem juntas ao amor, ele coloca justamente este último acima das duas primeiras virtudes.73 De fato, a esperança se exerce somente enquanto  não se verifica o gozo daquilo em que se espera, e a fé, do mesmo modo, serve de apoio na incerteza própria da esperança. Com essas palavras [o Apóstolo] a define: A fé é a substância das coisas em que se espera.74 Mas uma vez chegado o que se espera, enquanto todo o resto ignora todo movimento, a atividade ligada ao amor permanece pois ela não encontra nada para lhe suceder; por isso, essa é superior a todos os atos virtuosos e aos preceitos da lei. A alma que atinge este fim não tem necessidade de outro, porque

agora apreende a plenitude dos seres: e só ela parece conservar em si mesma a marca da bem-aventurança divina. A vida desta vida superior é o amor, enquanto o belo não pode ser objeto de amor para aqueles que o conhecem; essa conhece a divindade, e este seu conhecimento se transforma em amor, uma vez que o objeto do conhecimento se identifica por sua natureza com o belo. Aquilo que é verdadeiramente belo não é tocado pela saciedade orgulhosa (hybristēs ou prosáptetai kóros); e como nenhuma saciedade interrompe a disposição que conduz a amar o belo, é sem descontinuidade que a vida divina será ativa graças ao amor, que é belo em sua natureza; ama sempre o belo e não conhece limites na sua atividade amorosa: não consegue ver nenhum limite na beleza, a ponto de fazer cessar o amor ao mesmo tempo que cessa o belo, pois o belo de fato é delimitado somente pelo seu contrário; mas o bem, cuja natureza não admite  em si o  mal, avançará em direção ao bem infinito e sem limite.

A PURIFICAÇÃO, OBRA DE DEUS QUE ATRAI A ALMA

Atraída por Deus, a alma suporta uma purificação necessariamente  penosa

Uma vez que toda natureza atrai para si aquilo que lhe é afim, e o homem é em certo sentido afim a Deus já que tem em si a imitação do arquétipo, a alma não pode não ser arrastada em direção ao divino por aquilo que lhe é afim; com efeito, é preciso que seja inteira e absolutamente reservado para Deus aquilo que lhe pertence. Se, portanto,  a  alma é leve e pura, sem nenhum fardo corporal que pese sobre ela, a sua ascensão em direção Àquele que a atrai é agradável e fácil. Mas levantemos a hipótese  de que esta  seja trespassada pelos pregos da afeição pelas coisas materiais. Nos desastres provocados por terremotos, os corpos esmagados pelos escombros são destinados a sofrer uma semelhante sorte. Suponhamos que esses não somente sejam sufocados pelas ruínas,  mas que sejam também trespassados pelos paus e pelos pedaços de madeira que se encontram nos escombros. É fácil intuir os sofrimentos que tocam aos corpos que se encontram nesse estado, quando os seus próximos os retiram das ruínas para sepultá-los santamente: esses são todos pisados e reduzidos a pedaços e sofrem as penas mais atrozes, lacerados pelos escombros e pelos pregos sob o efeito de uma tração violenta. Parece-me que análogos sofrimentos provem também a alma, quando a potência divina, impelida pelo seu amor em favor dos homens, deseja extrair aquilo que lhe pertence dos escombros representados pela irracionalidade e pela matéria. Na minha opinião, Deus,  que exige em restituição e atrai para si tudo aquilo que nasceu graças  a ele,  não inflige aos pecadores as dores porque os odeia ou queira puni-los pela sua má vida: ele se limita atrair a alma para si, a fonte de toda bem-aventurança, em vista  de um bem superior;  mas aquele que é arrastado não pode não tocar a dor.

Como quem deseja eliminar com o fogo o material que se encontra misturado com o ouro não pode limitar-se a fundir este material espúrio, mas é constrangido a fundir juntamente também o ouro puro, que permanece enquanto o primeiro  se  consuma, assim, enquanto o mal é consumido pelo fogo inextinguível, a alma também, unida a ele, está necessariamente no fogo, até que os elementos espúrios e materiais que foram semeados nela não sejam eliminados e consumados pelo fogo eterno.

Outra comparação: se em torno de uma pequena corda se unta em profundidade com argila muito viscosa e, introduzida sua extremidade em um orifício estreito, puxa-se violentamente esta última para o interior, a corda segue necessariamente aquele que a puxa, enquanto a argila aplicada em torno dela permanece fora da abertura sob  a  violência da tração; ela faz sim com que a corda não passe comodamente, mas seja submetida à violenta tensão de quem a atrai. Uma coisa semelhante me parece que se deva pensar a propósito da alma que, envolvida em apegos passionais, materiais e terrenos, suporta fadiga e tensão quando Deus atrai para si aquilo que lhe pertence, e que os elementos estranhos, por terem sido de algum modo combinados com ela,  são eliminados violentamente e produzem nela dores agudas e insuportáveis.

E eu observei: “Ao que parece, não é o juízo divino o ator principal das penas infligidas aos pecadores; como o presente raciocínio mostrou, sua ação não faz senão separar o bem do mal, arrastando-os com violência para a participação na bem- aventurança; é, ao contrário, a cisão desta união íntima que se torna dor para aquele que  é atraído”.

“Sim, diz nossa mestra, é também meu pensamento. A medida da dor depende da quantidade do mal que se encontra em cada um. Não é justo que aqueles que estão tão mergulhados nos vícios proibidos e aqueles que se fizeram arrastar por pecados menos graves sejam atormentados em igual medida enquanto se purificam do mal. Mas é segundo a quantidade da matéria [apegada à alma] que acenderá mais ou menos a chama dolorosa, tanto tempo quanto subsista aquilo que a nutre. Naquele que é oprimido  por  um forte fardo material, a chama destruidora é necessariamente intensa e de mais longa duração; naquele que é, ao contrário, menos consumido pelo fogo, a punição reduz os seus efeitos violentos e dolorosos na medida em que o vício que lhe  é submetido é  menor. O mal deve ser de fato de todo eliminado do ser: como se disse antes, o não-ser não pode existir. Uma vez que o mal não pode, por natureza, existir fora do livre-arbítrio, quando o livre-arbítrio se encontra em Deus, o mal irá ao encontro da total destruição porque não lhe resta mais nenhum receptáculo.”

“Mas, qual é o benefício desta boa esperança, objetei, para quem imagina o quanto é mau suportar um sofrimento mesmo em um só ano, se esta dor insuportável se prolonga por uma duração eterna? Qual consolação que deriva desta extrema esperança resta naquele ao qual a punição é assinalada para a eternidade?”

“Por isso – respondeu ela – é preciso imaginar antecipadamente, ou, antes, guardar nossa alma absolutamente pura e sem relação com as impurezas do mal; ou, se isto é de todo impossível por causa da passionalidade de nossa natureza, é preciso fazer de modo que os insucessos da virtude sejam limitados e curáveis. O ensinamento evangélico sabe quem deve dez mil talentos, quem [deve] quinhentos denários, quem [deve] cinquenta denários e quem [deve] um quadrante, que é a última das moedas;75 o juízo de Deus examina tudo, tornando coextensivo ao peso da dívida a compensação necessária, sem negligenciar tampouco os débitos menores.

 

A pena expiatória, condição da liberdade

O Evangelho diz que a restituição das dívidas não se faz mediante o pagamento de  uma soma de dinheiro, mas o devedor é submetido aos torturados até que, diz  o texto,  ele tenha restituído tudo aquilo que deve.76 Isso pode significar somente que aquilo que é devido se deve pagar com os tormentos: a dívida consiste em provar aquelas dores das quais se tornou devedor na vida quem, por irreflexão, escolheu prazer puro  e  sem mistura de seu contrário. Só assim, depois de ter rejeitado tudo o que lhe era estranho, e que é o pecado, e depois que tiver se libertado da vergonha das dívidas, ele conhecerá liberdade e segurança.

 

Libertação do mal e assimilação a Deus, que se torna tudo em todos

A liberdade consiste em assemelhar-se àquilo que não está sujeito a nenhum mestre e que pode dispor de si: ela nos foi dada por Deus no início, mas foi em seguida recoberta pela vergonha das dívidas. A liberdade é única por natureza, e está sempre em união íntima com ela mesma; em consequência, portanto, tudo o que é livre está em acordo  com o seu semelhante; mas “a virtude não tem mestres”; consequentemente, é nela  que se encontrará tudo o que é livre, pois o que é livre  não tem mestre.  Mas a natureza  divina é fonte de toda virtude; nela, portanto, se encontrarão aqueles  que se libertaram  do mal, a fim de que, como diz o Apóstolo, Deus seja tudo em todos.77 Esta palavra me parece confirmar claramente o pensamento que acabamos de expressar, segundo o qual Deus é, ao mesmo tempo, tudo e se encontra em todos os lugares.78 Nos tempos presentes, o transcorrer de nossa vida é variado e multiforme; e numerosas são as coisas às quais nós participamos, como o tempo, o ar, o lugar, a alimentação e a bebida, as  vestes, o sol, a luz, e muitas outras coisas essenciais às necessidades da vida,  nenhuma das quais é Deus. A bem-aventurança que aguardamos, ao contrário, não tem necessidade de nada, uma vez que a natureza divina se transformará para nós em todas  as coisas, dando-se em partilha, de maneira apropriada, para todas as necessidades da  vida celeste. Isto é demonstrado também pelos divinos oráculos, quando  dizem  que Deus, para aqueles que disto são dignos, se torna lugar, casa, vestimenta,  alimento, bebida, luz,  riqueza, realeza e todo pensamento e nome relativos  às coisas que contribuirão para a beleza da nossa vida. Mas aquele que se torna tudo se encontra também em todas as coisas; este discurso me parece, portanto, ensinar também a destruição completa do mal. Se, de fato, Deus está em todos os seres, é claro que o mal não se encontra nos seres. Se se supõe a existência [do mal], como pode Deus encontrar- se em todos os lugares? De fato, a exceção constituída por aquela torna incompleta a compreensão de todas as coisas. Mas quem estiver em todos os lugares não  se  encontrará no não-ser.”

“Que é preciso dizer, portanto – perguntei-lhe – àqueles que são pusilânimes  diante  das desgraças?”

“Dir-lhes-emos isto, respondeu a mestra: é sem razão que vos mostrais descontentes e tristes diante da inelutável concatenação e sucessão dos acontecimentos. Ignorais  o fim  ao qual tende cada coisa que no universo está submetida a uma regra: tudo deve tornar-

se afim à natureza divina em base à ordem e à sucessão, desejados pela arte e pela sabedoria do princípio superior. As naturezas racionais nasceram para que a riqueza dos bens divinos não seja estéril: os receptáculos das almas foram fabricados pela Sabedoria que formou o universo como vasos dotados de livre-arbítrio, para ser uma espécie de espaço capaz de receber os bens e que aumentasse constantemente com o acréscimo do que nele é vertido. A participação no bem divino é por natureza levada a tornar maior e mais capaz aquele no qual ela se produz, visto que é por um aumento de potência e de grandeza que ela é assumida por quem a recebe, e quem dela se nutre continua a crescer  e não cessa jamais seu crescimento. Pois, visto que a fonte dos bens jorra sem cessar, e que nenhum desses é supérfluo e inútil quando é assumido, a natureza daquele que neles participa transforma tudo aquilo que se derrama nela em um desenvolvimento da própria grandeza: ela se torna assim mais capaz de atrair o bem superior, e ao mesmo tempo, ela aumenta sua capacidade de recepção, duas operações que crescem conjuntamente: de  um lado, a força que recebe o alimento cresce graças à abundância dos bens; de outro lado, a administração do alimento se faz mais abundante graças ao progresso daqueles  que crescem. É, portanto, verossímil que a grandeza [de quem recebe] aumente até o ponto em que nenhum limite interrompe (epikóptei) o seu processo de crescimento.79

E eis que, diante de tal proposição, vos irritais acerca do caminho que nos é fixado, enquanto nossa natureza avança em direção ao seu fim próprio? A nossa marcha para essas realidades não é possível de outra maneira, se não arrancarmos da nossa alma este fardo molesto e terreno que nos pesa; e [não é possível] na pureza nos unir ao que nos é semelhante, se, pensando nas coisas do alto,  não nos purifiquemos da inclinação passional que experimentamos por ele nesta vida. Mas se experimentas tanto apego por este corpo e te atormentas a separação daquilo que tanto amas, não te desesperes tampouco por isso; tu verás que esse invólucro corpóreo, que agora é dissolvido pela morte, será novamente juntado com os mesmos elementos, não segundo sua organização atual, espesso e pesado, mas com um tecido bem construído, mais sutil e aéreo, de sorte que o que tu amas esteja ao mesmo tempo presente e restaurado em uma beleza superior e mais digna de ser amada.”

V.  TRANSMIGRAÇÃO, PREEXISTÊNCIA E APARIÇÃO DA ALMA. INTRODUÇÃO À DOUTRINA DA RESSURREIÇÃO

A doutrina pagã da transmigração da alma, as suas três variantes e os motivos de contato e de divergência com aquela cristã da ressurreição

Mas parece – observei – que esta série de argumentações introduz novamente em nossa discussão a doutrina da ressurreição, que me parece dever ser verdadeira e digna  de fé a partir do ensinamento das Escrituras, e não suportar dúvidas. Entretanto, visto que a fraqueza do pensamento humano se vê reforçada neste convencimento pelos raciocínios que nos são acessíveis, seria bom não deixar sem exame nem mesmo esse aspecto. Examinemos, portanto, aquilo que é preciso dizer.

Nossa mestra retomou: “Aqueles que são estranhos à nossa filosofia80 tocaram, com

concepções diferentes, cada um de seu lado, parcialmente na doutrina da ressurreição: eles não concordam exatamente com as nossas concepções, mas não abandonam tampouco toda esperança. Alguns tratam com insolência o ser humano quando afirmam que a mesma alma faz parte do homem e de um ser irracional, alma que reveste corpos sucessivos e que migra sempre segundo seu prazer, tornando-se volátil ou animal  aquático ou terrestre, depois de ter sido homem, alma que, inversamente, deixa esses animais para retornar à natureza humana. Outros estendem até as plantas essa extravagante crença, pensando que há entre a vida na madeira e a alma humana relação natural e familiaridade. Outros, enfim, julgam que somente um outro  homem  possa tomar o lugar de um homem, e que a vida humana prossegue sempre com os mesmos seres, visto que as mesmas almas se encontrariam para sempre, agora nesses indivíduos, depois, por sua vez, nos outros”.81

 

Doutrinas que contêm certa parcela de verdade

“Nós, ao contrário, impulsionados pelos ensinamentos da Igreja, dizemos que é bom admitir, daqueles que possuem tais doutrinas filosóficas,  somente aquela parte que  mostra em certa medida a sua harmonia com as nossas concepções sobre a ressurreição. A afirmação deles, segundo a qual a alma, depois de ter sido separada do corpo, se introduziria novamente em outros corpos, não destoa muito da nossa esperança em uma nova vida. Afirmamos que o nosso corpo é formado, tanto agora como no futuro, pelos elementos presentes no universo, e os filósofos pagãos pensam da mesma maneira. Não se pode, de fato, conceber uma natureza corpórea que não seja o resultado da união dos elementos. A diferença [entre nós e eles] consiste no fato de que nós dizemos que o mesmo corpo é novamente construído em redor da mesma alma, ajustado a partir dos mesmos elementos; eles, ao contrário, acreditam que a alma passe a outros corpos, susceptíveis de razão, desprovidos de razão ou desprovidos de sensações. Eles reconhecem que o corpo seja formado de partes presentes no universo, mas destoam de nós porque não acreditam que esse seja formado justamente daquelas partes idênticas que se tinham ligado à alma no início da vida corpórea. Por conseguinte, que não seja inverossímil que a alma se encontre novamente no corpo, é testemunhado pela filosofia pagã. Mas é agora o momento de examinar a inconsistência da doutrina deles, e de mostrar, tanto quanto possível, com uma série de argumentos corretos, a verdade.

 

Refutação da transmigração das almas humanas em corpos animais e vegetais: a confusão das naturezas

Que dizer, portanto, a propósito dessas questões? Aqueles que fazem transmigrar a alma em diversas naturezas me parecem confundir as propriedades naturais e misturar umas nas outras: a irracionalidade, a racionalidade, as faculdades sensoriais, a falta de sensações, coisas que, caso se encontrassem uma na outra, não seriam mais separadas entre si de modo constante segundo uma ordem natural. Dizer que a mesma alma é ora dotada de razão e de inteligência e está envolvida pelo invólucro de um corpo humano,

ora habita nas cavernas junto às serpentes, ora entra na multidão dos pássaros, ora transporta os fardos, ora se nutre de carne, ora vive na água, ora cai em uma planta desprovida de sensações que finca raízes, tornando-se árvore, que faz surgir os ramos, e que produz neles ou as flores, ou os espinhos, ou frutos capazes de nutrir, ou frutos nocivos, outra coisa não é senão pensar que todas as coisas são uma única realidade, e que a natureza dos seres é única, confusa em uma comunhão onde tudo se mistura e não conhece distinções, uma vez que nenhuma propriedade separa mais uma coisa da outra. Quem afirma que uma mesma coisa se encontra em todos os lugares quer dizer somente que tudo é uma unidade, uma vez que as aparentes diferenças não impedem a mistura entre seres que não deveriam ter nada em comum. Consequentemente, quando vê um animal carnívoro ou venenoso, deve necessariamente admitir que aquilo que lhe aparece  é da mesma raça que ele; e nem mesmo o veneno pode parecer-lhe estranho, se vê a natureza humana também nas plantas. As suspeitas devem recair também na uva, que se cultiva para as necessidades da vida [material]: esta uva é, de fato, uma planta; e plantas são também os produtos das espigas, com as quais nos nutrimos.

Como, portanto, ele pode mover a foice para cortar as espigas? Como pode espremer  a uva, ou arrancar da terra as espinhas, ou colher as flores, ou caçar os pássaros, ou acender o fogo com pedaços de madeira, quando teme fazer mal aos consanguíneos, aos antepassados ou aos parentes, e fazer uso de seus corpos quando acende o fogo, quando mistura o vinho na taça ou se prepara o alimento? Quem acredita que, em cada um  desses casos, a alma do homem se torna uma planta ou um animal, mas sem dispor de sinais para mostrar como é a planta ou o animal que derivam de um homem, ou como é aquele que tem uma outra origem; quem adota esta suposição manifesta uma atitude igual em relação a todas as coisas: em consequência, é necessariamente levado ou a ser insensível em relação aos homens vivos, ou, se o sentimento de humanidade o inclina em direção àqueles de sua raça, a nutrir as mesmas disposições em face de todos os seres vivos, sejam esses serpentes ou feras selvagens; e mais ainda, se aquele que admite esta crença se encontrar entre as árvores de uma floresta, ele imaginará que as árvores são uma multidão de seres humanos. Qual será, portanto, a vida de tal homem, pleno de respeito para com todas as coisas, porque poderiam ser seus parentes, ou permanecerá insensível em relação aos homens, porque as outras coisas lhe são indiferentes?

Teoria da preexistência das almas

A doutrina da preexistência das almas, de sua queda; em seguida, de sua subida…

Em base do que se disse, este raciocínio deve ser rejeitado: muitas outras razões também nos afastam justamente de tal suposição. Eu soube daqueles que professam doutrinas deste gênero que há, na opinião deles, multidões de almas que vivem em uma cidade particular antes de conhecer a vida no corpo: na sutileza e na mobilidade de sua natureza, elas se moveriam com o universo em rotação, mas, por uma inclinação em direção ao mal, as almas perdem suas asas e caem nos corpos; primeiramente, residiriam nos corpos humanos e, em seguida, tendo abandonado a vida  humana, elas  se transformariam em feras, dado o seu comércio com as paixões irracionais; abandonadas

as feras, cairiam [enfim] na vida vegetal e insensível. Consequentemente, a alma, o ser que por natureza é sutil e móvel, torna-se, antes de tudo, pesada e se inclina para baixo, entrando nos corpos humanos por causa do mal; em seguida,  com a extinção  da capacidade de raciocinar, ela vive entre os seres não dotados de razão; enfim, uma vez eliminado também o dom da sensação, assume a vida privada de sensibilidade, que é das plantas; partindo desta, inversamente, ela sobe pelos mesmos degraus até ser estabelecida na morada celeste.82

 

… não tem nenhuma consistência

Até mesmo aqueles que possuem uma capacidade de juízo medíocre são capazes de provar a inconsistência de tal doutrina. Se, por causa do mal, a alma é arrastada da vida celeste para baixo na vida vegetal e, portanto, graças à virtude, sobe desta para a vida celeste, vê-se este pensamento confuso para dizer o que para ela é o mais precioso,  a  vida vegetal ou aquela celeste, pois aí existe um movimento circular que atravessa pontos semelhantes, uma vez que a alma, onde quer que ela esteja, está sempre na instabilidade. Se ela for precipitada da vida incorpórea para a vida corporal, e desta para a vida privada de sensações; e se, em seguida, desta última sobe àquela incorpórea, pode-se supor que naqueles que ensinam essas coisas reine uma confusão entre o bem e o mal que não admite mais distinções. A vida celeste não é mais bem-aventurada, se o mal  atinge aqueles que aí vivem; e as árvores não são privadas de virtude, se é verdade que a alma sobe deste nível para o bem, enquanto começa a viver segundo o mal quando desce do céu. Se a alma, enquanto gira no céu, se liga ao mal que a arrasta para a vida  material;  se, em seguida, é erguida deste em direção a uma vida mais alta,  então,  ao contrário,  para esses, a vida material é uma purificação do mal, ao passo que o movimento circular estável torna-se para as almas princípio e causa de males, se é verdade que  desta  morada, munidas de asas pela virtude, elas se elevam através dos ares mas que, deixando esta com a queda das asas causada pelo mal, elas se aproximam da terra e caem no solo, misturadas à espessura da natureza material.”

 

… é repleta de contradições…

O absurdo de tais doutrinas não se limita a uma inversão completa das concepções, mas o próprio pensamento deles tampouco permanece firme até o fim. Se, de fato, eles afirmam que a natureza celeste é imutável, como a paixão tem seu lugar no imutável?  E  se a natureza inferior está submetida às paixões, como, naquilo que é submetido às paixões, se realiza a impassibilidade? Com efeito, eles confundem e unem entre si coisas que não se podem misturar e que não admitem nenhuma união: eles veem na paixão o imutável e, inversamente, na mudança, a impassibilidade. Eles não se mantêm, definitivamente, tampouco nessas posições: expulsa a alma da vida material, recolocam- na novamente naquela vida sem perigo e imortal da qual a tinham expulsado  por causa  do mal, esquecendo que justamente da vida celeste a alma se afastara presa ao vício para unir-se à natureza inferior.

A acusação feita contra a vida aqui debaixo e os louvores tributados às coisas celestes se misturam e se confundem, uma vez que o que se acusa conduz ao bem, segundo a opinião deles, e o que se concebe como conduzindo ao bem fornece à alma a ocasião de inclinar-se para o mal. Devemos, portanto, rejeitar das doutrinas de verdade todas as suposições relativas a esses argumentos, plenos de erros e privados de fundamento.

 

… atribui ao mal um papel determinante

Mas não devemos tampouco seguir aqueles que pensam que as almas passam dos corpos das mulheres para a vida dos homens, ou que inversamente as almas  separadas  de corpos dos homens vão para os das mulheres, ou que elas passam também de um homem para outro ou de uma mulher para outra, pois eles se afastam da verdade.83 O raciocínio precedente foi rejeitado não somente porque é inconsistente, ilusório e aberto a conclusões contraditórias, mas também porque é cheio de impiedade, na medida em que ensina que nenhum ser pode nascer, se o mal não fornece a cada natureza a ocasião do nascimento. Se, com efeito, nem os homens, nem as plantas, nem os animais podem nascer se a alma não cai do alto sobre eles, e se a queda se faz por intermédio do mal, esses pensadores julgam que o mal tem a iniciativa na constituição dos seres.

… tem implicações concretas absurdas

E como se produzem, ao mesmo tempo, os dois eventos, a procriação de um ser humano em virtude do matrimônio e a queda da alma em concomitância com as práticas conjugais? E se é verdade que é justamente na primavera que sucedem os acasalamentos de quase todos os animais irracionais, uma outra coisa é ainda mais absurda: talvez seja necessário dizer que a primavera provoca a aparição do mal no movimento circular, de modo que, ao mesmo tempo, as almas caiam [do alto], imbuídas do mal, e que o ventre dos animais conceba? E que diremos do agricultor que fixa na terra os rebentos das plantas? Como pode a sua mão sepultar a alma humana com a planta, como se a queda das asas da alma coincidisse com o empenho que conduz o homem a plantar? É,  portanto, absurda também outra opinião, segundo a qual as almas estão absortas em perscrutar as uniões íntimas daqueles que vivem em laço matrimonial, ou espreitam as partes para introduzir-se nos corpos que nascem; mas se o homem recusa a união conjugal, se a mulher se liberta da obrigação do parto, [deva-se talvez pensar que] o mal cessará de acabrunhar a alma? Por conseguinte, ou a união conjugal fornece ao mal a ocasião para agir contra as almas, ou a propensão para o princípio  contrário se apodera  da alma independentemente da união conjugal. A alma é, portanto, destinada a vagar, errante, pelos espaços intermédios se, uma vez caída do céu, se encontra privada de um corpo capaz de recebê-la.

 

… nega toda providência

E como podem supor que a divindade governe os seres nessas condições, quando se atribui a esta queda das almas, fortuita e irracional, a origem da vida humana? Pois é

forçoso que haja harmonia entre a origem e o que vem depois dela: se a vida teve início por um acidente casual, o seu desdobramento se torna também de todo casual. É inútil que tais pessoas façam depender os seres da potência divina, se negam que os seres do universo são produtos da vontade divina e atribuem o nascimento das coisas a  um funesto acidente, como se a vida humana não tivesse consistência fora da ocasião dada à vida pelo mal. Se esta é a origem da vida, é evidente que também aquilo que segue se desdobra segundo essa origem: ninguém poderia dizer que do mal surge o bem, nem do bem se produz o seu contrário, mas é segundo a natureza da semente que aguardamos os frutos. Portanto, toda a vida [na opinião deles] é governada por este movimento espontâneo e acidental, e nenhuma providência está presente no meio dos seres.

 

… destrói a moral…

Absolutamente inútil se torna também a prudência nos raciocínios: o benefício da virtude seria nulo, e uma atitude de hostilidade contra o mal não poderia ter nenhum  valor: com efeito, todas as coisas dependem inteiramente daquilo que as arrasta, e a vida não apresentará nenhuma diferença dos navios desgovernados: os acidentes casuais, como se fossem ondas, a fazem passar de um lado para outro,  quer seja bom ou mau.  Os seres, cuja natureza deriva de um princípio contrário [ao bem], não podem receber nenhum benefício da virtude. Se [se admite que] Deus regula a nossa vida, não se pode admitir que esta seja regulada pelo mal. Se, ao contrário, nascem através do mal, nós viveremos inteira e absolutamente segundo ele.

… e exclui todo ato de vontade livre, o mal governando tudo

Se se aceita tal hipótese, são somente frivolidades que os tribunais que nos aguardam depois desta vida, as recompensas proporcionadas aos nossos méritos, e todas as outras coisas das quais se fala e nas quais se acredita, destinadas a fazer desaparecer o mal. Como é possível que escape a este mal o homem que nasceu através dele? E como pode o homem ser dotado de uma livre aspiração à vida virtuosa, se a sua natureza, como o dizem, tem a sua origem no mal? Como nenhum animal irracional tenta falar como um homem e quando usa a voz que lhe é habitual e que é conforme à sua natureza não julga um castigo a falta de palavra, do mesmo modo aqueles que veem no mal a origem e a causa de sua vida não podem chegar a desejar a virtude, que se encontra  fora  da natureza deles. Todos aqueles que, ao contrário, purificam a alma com os próprios pensamentos (ek logismōn) cultivam e desejam a vida virtuosa. Tudo isso demonstra claramente que o mal não é mais antigo que a vida, e que a nossa natureza não se origina dele: ao contrário, a iniciativa de nossa vida depende da sabedoria de Deus, que governa  o universo.

 

A alma, vindo de Deus, é livre; cabe a ela dirigir sua liberdade

Uma vez nascida segundo o modo que apraz ao Criador, a nossa alma, graças ao seu livre-arbítrio, tem a faculdade de escolher aquilo que lhe agrada, e de tornar-se aquilo

que deseja. Esta ideia poderia ser ensinada melhor através do exemplo dos olhos: a faculdade de ver corresponde à natureza deles, enquanto o fato de que não  veem depende ou da nossa vontade ou de um acidente: de fato, a função natural deles pode ser substituída por um fenômeno que é contrário à natureza, fechando os olhos voluntariamente ou quando o olho  é privado da visão  por causa de um acidente. Portanto, podemos dizer que a alma foi formada por Deus e que é livre da escravidão do mal, que não pode ser imaginado na divindade. Uma vez nascida, porém, ela pode deixar-se conduzir em direção ao bem ilusório ou porque fecha voluntariamente os olhos  à visão da verdadeira beleza, ou porque vive nas trevas e no engano, sendo a sua visão prejudicada pelas insídias do inimigo  que se estabeleceu em nossa vida; ou ainda, inversamente, ela é capaz de dirigir um olhar puro para a verdade e de afastar-se assim das paixões tenebrosas.

 

A doutrina cristã da origem da alma: esta nem preexiste ao corpo, nem é criada depois desse, mas, sim, contemporaneamente a este

Quando e como se pode dizer que ela vem à existência? Mas a pesquisa que concerne ao modo da gênese de cada coisa deve ser inteiramente eliminada  de nosso discurso.  Nem tampouco no caso das coisas às quais podemos facilmente pensar porque são perceptíveis com as sensações, a razão investigadora seria capaz de conceber o modo como se formou aquilo que se vê: nem mesmo aos homens inspirados e santos isto pareceu concebível. “Pois é pela fé, diz o Apóstolo, que nós compreendemos que os mundos foram criados pela palavra de Deus,  de sorte que o que se vê provém do que  não é aparente.”84 Na minha opinião, ele não teria falado assim se tivesse pensado que o objeto de nossa pesquisa fosse concebível por meio de raciocínios. O Apóstolo diz acreditar que, por uma vontade divina, foram criadas a eternidade e todas as coisas que dela provêm, qualquer que seja esta eternidade na qual se podem contemplar as naturezas visíveis e invisíveis; quanto ao como essas foram criadas, ele o deixou sem examiná-lo.

Antinomias entre Criador e criatura

Não penso que tal questão esteja ao alcance daqueles que procuram, pois numerosas são as dificuldades que faz surgir diante de nós a pesquisa nesses assuntos: como pode aquilo que se move ter nascido da natureza imóvel? E como pode aquilo que é dotado de extensão e composto derivar da natureza simples e sem dimensões? Essas coisas nasceram talvez da essência transcendente? Mas isto não se pode admitir em virtude do fato de que os seres possuem uma natureza diversa da sua! Então de qual outra origem? Na verdade, a razão nada consegue ver que esteja fora da natureza divina.

Nem dualismo, nem panteísmo, mas criacionismo

As nossas suposições se dispersariam entre diversos princípios, se acreditássemos na existência de um princípio que seria estranho à causa criadora, e da qual a sabedoria

engenhosa (hē technikē sophia) recolheria os elementos necessários para a criação. Uma vez que uma só é a causa dos seres, e que não há homogeneidade entre a causa transcendente e o que ela faz nascer, resulta igual o absurdo de ambas as suposições, pensar que a criação deriva da natureza de Deus ou que os seres se tenham formado a partir de uma essência diversa: ou se deve pensar que Deus se encontra nos traços particulares da criação, mas então os seres criados são afins a Deus; ou ainda é preciso introduzir uma natureza material distinta da substância divina, mas igual a Deus pelo fato de que é não gerada e eterna. É justamente o que imaginaram os Maniqueus bem como alguns filósofos gregos que admitiram as mesmas suposições, e eles estabeleceram como dogma esta quimera (tēn phantasian tautēn).

Para escapar deste duplo absurdo em nossa pesquisa sobre os seres, a exemplo do Apóstolo, deixaremos, portanto, de lado, sem examiná-la, a discussão concernente ao modo como cada ser se originou; recordemos somente que o movimento da vontade divina, quando ela o deseja, torna-se realidade, e que a vontade se faz substância tornando-se logo natureza; pois a liberdade onipotente – qualquer que seja o objeto por esta desejado em sua sabedoria e em sua arte – não deixa sem efeito. A existência da vontade é também substância.85

 

Dimensão intelectual de toda criação

Os seres se distinguem em duas classes, a dos seres inteligentes e àquela dos seres corpóreos. A criação das criaturas inteligentes não parece se diferenciar daquela da natureza incorpórea: dada a afinidade delas com esta serem invisíveis, não podem ser tocadas, e não possuem dimensões; e não se engana quem supõe a existência desses traços também na natureza transcendente. Nas criaturas corpóreas se observam, ao contrário, particularidades sem nenhuma relação com a divindade: essas  provocam muitas dificuldades à razão, que não consegue compreender como do invisível pode derivar o visível, daquilo que não se pode tocar, o sólido e o resistente, daquilo que é indeterminado, o determinado, daquilo que é privado de quantidade e de grandeza, aquilo que é totalmente circunscrito por medidas onde se considera a quantidade;86 e que há também cada uma das características que permitem apreender a natureza corporal, a propósito das quais podemos dizer que nada daquilo que se vê nos corpos é de per si um corpo; não é a forma, nem a cor, nem o peso, nem a extensão, nem a quantidade, nem tampouco aquilo que se pode pensar pertencente às várias qualidades; ao contrário, cada uma dessas coisas é um conceito (logos): são a sua combinação uns com os outros, e a sua união, que constituem o corpo. Portanto, visto que as qualidades se completam para formar o corpo, são apreendidas pelo intelecto e não pelas sensações, e que a divindade é uma natureza inteligente, qual dificuldade pode existir a que as realidades  inteligíveis sejam produzidas pelo ser inteligível, realidades cuja combinação umas com as outras  deu nascimento à natureza de nosso corpo? Mas trata-se de uma pesquisa a ser feita, estranha ao presente problema.

Exigência de uma aparição simultânea da alma e do corpo…

O escopo de nossa pesquisa era saber se as almas preexistem aos corpos, quando nascem e como nascem. Para a questão do modo como se originaram as almas,  em  nossa discussão, nós a deixamos de lado sem examiná-lo, porquanto é insolúvel. Quanto ao momento em que é dado às almas o começo de sua existência, nos resta agora determinar como este ponto está em acordo com o que já examinamos. Se se admite que a alma vive em uma condição particular, preexistente ao corpo, é necessário atribuir certo valor aos raciocínios absurdos daqueles que fazem habitar as almas nos corpos por causa do mal. Mas, de outro lado, nenhuma pessoa sensata pode supor que as almas nasçam sucessivamente e sejam posteriores à formação do corpo, uma vez que é evidente a  todos que nenhum ser desprovido de alma possui em si mesmo a força de produzir o movimento e o crescimento; ora, para os seres que se desenvolvem no seio materno,  nem seu crescimento nem sua mudança de posição são objeto de disputa ou de dúvida. Não resta, portanto,  senão supor que a formação da alma  e a do corpo tenha uma única  e idêntica origem.

 

… pois na origem de todo vivente há o princípio vital

E da mesma maneira que a terra recebe do agricultor o rebento arrancado da raiz e  dele faz uma árvore não porque injete neste fragmento que ela  nutre a força que produz  o crescimento, mas só porque fornece a isso que se encontra nela a ocasião para o crescimento, assim dizemos também que o fragmento que se separa do homem para  gerar um outro homem é, de certa maneira, um ser vivo: é um organismo animado proveniente de um outro organismo animado, um ser recebendo alimento provindo de  um ser que recebe alimentação. Mas que a pequenez do fragmento separado não seja capaz de todas as atividades e de todos os movimentos da alma, nisto nada há de espantoso: nem mesmo o grão que se encontra na semente é uma espiga visível – e como poderia uma coisa tão grande entrar em uma coisa tão pequena? O grão se torna espiga porque a terra lhe fornece nutrientes apropriados, sem mudar de natureza no solo; ele, ao contrário se revela e se desenvolve completamente sob a ação da nutrição. Como no  caso das sementes da plantas o desenvolvimento atinge o seu termo paulatinamente, do mesmo modo, também no caso da formação de um ser humano, a força da alma se  revela em proporção às dimensões do corpo: primeiramente, ela se mostra pela capacidade de alimentar-se e de crescer nos seres que se formam em um seio; em segundo lugar, ela concede ao ser que veio à luz as faculdades sensoriais; em terceiro lugar, quando a planta já está crescida, faz brilhar nela de maneira reduzida, como se  fosse um fruto, a faculdade racional: não inteiramente de uma só vez, mas se desenvolvendo ao mesmo tempo que cresce a planta, em um progresso contínuo. Assim, portanto, visto que o fragmento separado dos seres animados para estar na origem da formação de um ser animado não pode ser uma coisa morta (o estado de morte vem pela privação da alma, e a privação não poderia preceder a posse), somos capazes de compreender que a entrada na existência é comum aos dois elementos que compõem o composto [isto é, o corpo e a alma], sem que um preceda nem que o outro venha depois.

Mas o nosso raciocínio prevê necessariamente também o momento em que o crescimento do número das almas terminará, a fim de que a natureza não continue a espalhar-se sem cessar, progredindo continuamente em virtude dos novos seres que vêm  a acrescentar-se, sem jamais cessar seu movimento. Esta é, em nossa opinião, a causa pela qual a nossa natureza deverá tornar-se estável: uma vez que toda natureza inteligível é completa, é natural que chegue um dia à sua plenitude também o gênero humano, que não é desprovido tampouco do elemento inteligível; do contrário, daria  a impressão de  ser sempre incompleto. O acréscimo contínuo de novos seres é, de fato, prova do caráter incompleto da natureza.

Quando o gênero humano tiver atingido finalmente sua totalidade, este tumultuoso movimento da natureza, alcançada a sua meta necessária, se deterá completamente, e uma outra condição sucederá àquela presente, diferente daquela que é agora vivida na geração e na corrupção; se não houver a geração, não poderá existir necessariamente  nem mesmo a corrupção. Se antes da dissolução há a composição – e por composição se entende o ingresso na vida através da geração –, disto resulta que, se a composição não  dá origem à vida, a dissolução tampouco se produz. Portanto, em conformidade com os conteúdos da fé, a vida futura aparece estável e indestrutível, visto que nem geração nem corrupção podem alterá-la.

VI.   O MISTÉRIO DA RESSURREIÇÃO, A APOKATÁSTASIS E A SALVAÇÃO UNIVERSAL

Plenitude do universo e da ressurreição.

Eu, depois desta exposição de nossa mestra, e como o discurso parecia à maioria dos assistentes ter atingido o termo conveniente, fui tomado pelo temor de que não haveria mais ninguém capaz de resolver as objeções levantadas pelos pagãos contra a ressurreição toda as vezes que a mestra tivesse sucumbido à doença – o que de fato aconteceu –, assim disse: “o nosso discurso não atingiu ainda o ponto mais importante de nossas pesquisas sobre a doutrina; com efeito, a Escritura inspirada por Deus afirma, tanto no ensinamento novo como no antigo, que nossa natureza se desdobra com certa ordem e certo encadeamento, e segundo o movimento do tempo, transitório, e  que cessará um dia esta corrente que progride e avança através da sucessão dos descendentes; e como o completo acabamento do universo não admite mais  o crescimento em direção a uma maior quantidade, é a totalidade das almas sem exceção que, do estado invisível e disperso,  retornará em sentido inverso a um estado organizado e aparente, uma vez que os mesmos elementos se reunirão novamente entre si segundo a mesma lei. Esta condição de vida é chamada ressurreição pelo ensinamento divino da Escritura, pois, ao mesmo tempo que o levantamento do elemento terrestre, é designado também o movimento geral dos elementos.”

“Que coisa, portanto, não havíamos recordado em nosso discurso”, disse ela. “Trata-se justamente da doutrina da ressurreição”, disse eu.

“Entretanto, disse ela, muitas coisas das quais se falou detalhadamente se referem a este tema.”

“Mas não sabes, eu disse, que enxame de objeções é levantado contra nós  por  aqueles que são contrários a esta nossa esperança?”. E, ao mesmo tempo,  procurei ilustrar todas as invenções dos que amam controvérsias, que tendem a destruir a crença na ressurreição.

Dossiê escriturístico sobre a ressurreição

Mas ela disse: “Parece-me oportuno percorrer brevemente as palavras depositadas aqui e acolá pela divina Escritura a respeito desta doutrina,  para colocar um ponto final  ao nosso discurso.

Sl 103, 29-30

Ouvi, portanto os louvores que canta Davi, em cânticos divinos, quando, tendo tomado como tema de seu canto a ordem do universo, ele disse isto no salmo 103, no final do hino: “Eu lhes tirarei o espírito, e eles desaparecerão, e voltarão ao pó; tu enviarás o teu espírito e serão criados, e renovarei a face da terra”. Ele apresenta o poder do espírito, que se faz sentir em todos, no ato de vivificar aqueles nos quais se torna presente, e, inversamente, priva da vida aqueles dos quais se afasta. Uma vez que, portanto, segundo as suas palavras, os viventes desaparecem quando o espírito se retira enquanto aqueles que morreram se renovam graças à sua presença, e que, segundo a ordem do enunciado, ao desaparecimento precede a renovação dos seres, podemos afirmar que o mistério da ressurreição é anunciado à Igreja pelo espírito profético de  Davi, que proclamou por antecipação esta graça.

 

A festa das Tendas…

Mas também este mesmo profeta, em outro lugar, nos diz que o Deus do universo, o Senhor dos seres, se manifestou no momento em que celebramos a festa entre aqueles que cobrem as tendas: com o termo “cobertura” (tou pykasmou) ele explica o significado da festa das Tendas, praticada já desde tempos antigos segundo a tradição que remonta a Moisés.87 Julgo que é como profeta que o legislador predizia o futuro: esta festa, mesmo sendo celebrada, na realidade não tinha  ainda acontecido. Pois a verdade era por antecipação revelada, em símbolos, através de figuras que são os acontecimentos; a verdadeira fixação das tendas ainda não se tinha verificado. Mas se, segundo a palavra profética, o Deus e Senhor de todas as coisas, se revela a nós a fim de que seja  organizada para a natureza humana a reconstrução da nossa casa destruída, que tem a  sua cobertura material na reunião dos elementos. O termo “cobertura” (pykasmós) designa claramente, em seu sentido próprio, o invólucro  corpóreo e o ornamento que  dele deriva. Mas eis os termos do salmo: “Deus é Senhor e se manifestou a nós, para que celebrássemos a festa entre aqueles que recobrem [as tendas] até os ângulos  do altar”,88  o que me parece anunciar por antecipação, de modo enigmático, que uma festa única é organizada para toda a criação racional, e que, na sociedade dos justos, inferiores e superiores dançarão juntos.

… signo de uma salvação universal, onde cada ordem da criação tem seu lugar

De fato, no que diz respeito à típica conformação do templo, não era permitido  a  todos penetrar no recinto exterior: o ingresso  era vetado a todos os pagãos e aos pertencentes a outras nações; além disso, todos aqueles que estavam no recinto não tinham igualmente direito de entrar na parte mais interna: [tal permissão era concedida] somente a quem se tinha purificado com um gênero de vida mais puro e certas abluções rituais; por sua vez, o santuário do interior não era acessível a todos, mesmo entre esses últimos, mas a lei permitia unicamente aos sacerdotes ultrapassar a tenda para celebrar os sacrifícios. E na mais secreta e arcana do templo, o adyton, no qual era colocado o altar adornado com ângulos salientes, nem mesmo os próprios sacerdotes podiam entrar, salvo um só, aquele que ocupava o primeiro lugar no sacerdócio e que, uma vez ao ano, em certo dia fixado pela lei, oferecendo, sozinho, um sacrifício mais secreto e mais sagrado, penetrava no santuário interior. Estas eram as distinções presentes no templo, imagens e imitações da condição inteligível. As prescrições materiais nos ensinam que nem todas as criaturas racionais se aproximam do tempo de Deus, isto é, da profissão de fé no Deus grande: quem vai atrás das falsas crenças está destinado a permanecer fora do recinto divino. Entre aqueles que aí entram graças à sua profissão de fé, são preferidos aqueles que foram purificados com aspersões e outras práticas purificadoras; e entre esses últimos, se distinguem aqueles que se consagraram, de modo a serem julgados dignos da iniciação reservada. Mas para que o significado do enigma se torne mais evidente, esta outra coisa se deve aprender pelo ensinamento da razão: entre as potências dotadas de razão, algumas estão, como o santo altar, localizadas no santuário escondido da  divindade; outras se destacam ainda mais do que as primeiras pela sua excelência, enquanto despontam à semelhança de chifres; outras ainda, ao redor delas, possuem os primeiros e os segundos lugares segundo determinada ordem. O gênero humano, por culpa do mal que nele se hospeda, foi repelido para fora do recinto divino, no qual pode entrar somente quem se purificou com o banho da ablução.

 

A ressurreição, verdadeira festa das Tendas

Mas visto que essas barreiras intermediárias devem um dia ser destruídas – elas que permitiram ao mal de nos proibir o acesso ao interior do véu –, quando nossa natureza tiver sido  novamente, pela  ressurreição, erguida como uma tenda, e quando toda corrupção sobrevinda por causa do mal tiver sido totalmente erradicada dos seres, então aqueles que forem recobertos89 pela ressurreição celebrarão a festa junto de Deus, e  todos se alegrarão de um único e idêntico modo: nenhuma diferença separará mais as naturezas racionais da participação aos mesmos bens: ao contrário, aqueles que agora se encontram fora por causa do mal entrarão no santuário da divina bem-aventurança, e se aproximarão dos ângulos do altar, isto é, daquelas potências eminentes que se encontram em evidência. É exatamente o que diz o Apóstolo, de maneira mais simples, quando explica a harmonia do universo com o Bem: “Diante dele todo joelho se dobrará, no céu, sobre a terra e sob a terra, e toda língua confessará que Jesus Cristo é Senhor, para a

glória de Deus Pai”.90

Em vez dos ângulos [do altar], ele fala dos seres angélicos e celestes, e com outros termos designa a criação concebida depois deles, nós, que seremos reunidos em uma única e harmônica festa. A festa é a confissão e o reconhecimento daquele que é verdadeiramente.

 

A visão de Ezequiel

“Muitas outras passagens da sagrada Escritura – disse ela – poderiam ser reunidas  para garantir solidamente a doutrina da ressurreição. Assim, por exemplo,  Ezequiel, depois de ter, pelo espírito profético, superado todo o intervalo de tempo [que a  precede], se ergue no momento mesmo da ressurreição, por seu poder de presciência, e depois de ter contemplado o futuro como se fosse já presente, ele o mostra ao nosso olhar, em sua narração: Ele viu-se abrir-se diante dele uma planície grande e infinita, e nesta um amontoado, imenso, de ossos disseminados  aqui e acolá ao acaso; em seguida, o poder divino os ergue para que se juntem cada um com o que é de sua família e lhe é apropriado; enfim, se cobrem de nervos, de carnes e de peles (a este processo o canto do salmo alude com as palavras “aqueles que são recobertos”); e um espírito vivificou e despertou aqueles que jaziam.91

 

Testemunho de S. Paulo e do Evangelho

Quanto à maneira como o Apóstolo apresenta as maravilhas [que se verificaram] na ressurreição, é acessível a quem o queira ler: o que poderíamos dizer disto? Segundo a sua narração, naquele instante os mortos,  como que obedecendo a uma ordem,  ao som da trombeta serão restituídos todos juntos à condição da natureza imortal.92 Há também as palavras do Evangelho: elas são claras para todos, e as deixaremos de lado. O Senhor não se limita a assegurar com as suas palavras que os mortos ressurgirão,93 mas ele mesmo produz a ressurreição, e realiza os seus prodígios partindo das coisas mais próximas e menos susceptíveis de provar dúvidas. Com efeito, em primeiro lugar, mostra sua potência vivificadora quando cura as doenças mortais, que expulsa com as suas ordens e as suas palavras;94 em segundo lugar, desperta uma adolescente morta um  pouco antes;95 depois restitui à mãe96 um jovem que era conduzido ao sepulcro, fazendo-o sair do ataúde; em terceiro lugar, reconduz para fora do sepulcro Lázaro,  morto já há quatro dias, fazendo reviver o cadáver com as suas palavras e sua ordem;97 enfim, faz ressurgir ao terceiro dia o seu próprio corpo transpassado pelos pregos e pela lança, aduzindo como testemunha da ressurreição as marcas dos pregos e a ferida produzida pela lança.98 Não creio que seja necessário desenvolver esses pontos, uma vez que nenhuma dúvida subsiste naqueles que estão prontos para aceitar tudo quanto foi escrito.

 

Modalidade da ressurreição e problema da identidade do corpo ressuscitado com

aquele precedente. A questão dos corpos dos anciãos, dos deformados, dos recém- nascidos

“Mas não era este o objeto de nossa pesquisa, retomei eu. Quase todos os ouvintes estão dispostos a admitir, à base das provas escriturísticas e ao que foi já examinado precedentemente, que haverá uma ressurreição e que o homem será submetido ao juízo do tribunal incorruptível. Mas resta ainda examinar se o que esperamos será também como o que existe agora.

Se as coisas fossem verdadeiramente assim, eu diria que os homens deveriam recusar a esperança na ressurreição. Se os corpos humanos forem restituídos à vida tais como eram quando morreram, os homens, crendo na ressurreição, esperam um infortúnio sem fim. Com efeito, existiria espetáculo mais deplorável que ver corpos que uma extrema velhice encurvou, tendo-os reduzido à fealdade e à disformidade, uma vez que a carne é consumida pelo tempo enquanto a pele enrugada se resseca juntos aos ossos? Quando, pois, os nervos se contraem porque não são mais impregnados da umidade natural, e quando, consequentemente, todo o corpo é submetido a tensões, se assiste a um espetáculo absurdo e deplorável: a cabeça se dobra em direção ao joelho enquanto a  mão, que não possui mais a sua energia natural, é continuamente agitada por uma tremedeira involuntária. E como são os corpos daqueles que são consumidos por longas doenças? Esses diferem dos ossos desnudados somente porque parecem cobertos por uma pele sutil e agora desgastada! Outro exemplo também: como serão os corpos de quantos se tornaram inchados pela hidropisia? E aqueles que a enfermidade sagrada (hiera nosō)99 venceu: qual discurso conduziria o olhar para uma desgraça e uma disformidade tais que paulatinamente os progressos da putrefação devoram todos os membros, quer sejam simples instrumentos ou órgãos dos sentidos? E que coisa dever- se-ia dizer a propósito dos corpos daqueles que sofreram mutilações em consequência de terremotos, de guerras ou de qualquer outro motivo e que antes de morrer vivem por certo tempo nesta miserável condição, ou a propósito dos corpos daqueles que crescem com os membros deformados, em consequência de uma malformação congênita?

E que coisa se deve pensar a propósito das crianças recém-nascidas, das crianças

expostas, daquelas sufocadas, e daquelas que foram mortas por acaso, todas as vezes  que retornam à vida: Se permanecem na sua tenra idade, que coisa há de mais miserável? Se, ao contrário, chegarem à idade adulta, com que leite as nutrirá a natureza? Em consequência, se for justamente o mesmo corpo que a reviver, aquilo que aguardamos será um infortúnio.

Mas, ao contrário, se não é mais o mesmo corpo, é uma pessoa diversa do morto quem se levantará. De fato, se morre uma criança e ressurge  um adulto ou sucede a  coisa contrária, como se pode dizer que é o mesmo morto que ressurgirá,  quando o  morto suportou uma mudança por causa da diferença de idade? Quem vê no lugar da criança um homem adulto, e no lugar do ancião um homem que está na flor da idade, vê uma pessoa no lugar da outra; e igualmente se no lugar do mutilado vê uma pessoa sã, e no lugar de um homem debilitado um homem em boa forma, e da mesma maneira para

todos os outros casos que não desejo enumerar singularmente a fim de não causar tédio com o meu discurso. Se, portanto, não revive o mesmo corpo que foi sepultado na terra, não é mais o morto que ressurgirá: a terra se transforma em um outro homem. Que importância pode ter então para mim a ressurreição, se em meu lugar é um outro que  deve retomar a vida? Como reconhecer a mim mesmo, se não vejo a mim mesmo? Na verdade, eu não sou mais eu, se não sou de todo idêntico a mim  mesmo.  Admitamos que, na vida presente, eu tenha em minha memória os traços de alguém – suponhamos, por exemplo, que esta pessoa seja calva, com os lábios salientes, com o nariz um pouco chato, com a pele branca, com os olhos verdes, com cabeleira esbranquiçada, com o corpo enrugado – e que, procurando este homem [na vida futura], eu me encontro diante de um jovem com cabelos longos, de nariz recurvado, de pele negra,  alguém  diferente em todos os outros aspectos somáticos. Vendo este último, deverei, portanto, pensar que se trata do primeiro?

 

A natureza humana, sempre em transformação, não tem nenhuma identidade

Mas por que seria necessário passar mais  tempo pelas menores objeções, negligenciando as mais  importantes? Quem não sabe que a natureza humana se assemelha a uma corrente em perene fluxo desde o nascimento até a morte, e que seu movimento não cessa senão com o fim de sua existência? E este movimento não consiste em uma mudança de um lugar a outro (pois a natureza não vai embora dela  mesma),  mas progride graças à transformação. E a transformação, tanto quanto tempo existe o corpo de que se fala, não permanece jamais no mesmo ponto: com efeito, como poderia se conservar na identidade o que se transforma? Mas é como a chama da lâmpada que é aparentemente sempre a mesma, pois a continuidade do movimento a revela sempre ininterrupta e unida a ela mesma; na realidade, porém, esta se sucede sempre  a  si  mesma, sem jamais permanecer a mesma: o elemento úmido tirado do calor se inflama e queima para se transformar em fumaça,  e é sempre por seu poder de transformação que  é produzido o movimento da chama, que por si mesma muda em fumaça o que aí se encontra. Quem, portanto, toca duas vezes a chama no mesmo tempo não toca duas vezes a mesma chama, uma vez que a sua rápida transformação não espera este segundo contato, mesmo que isso aconteça no tempo mais  breve possível: a chama é sempre  nova e recente, enquanto se produz continuamente, sucede sempre a si mesma e não permanecendo jamais no mesmo ponto. De modo semelhante se comporta a natureza em relação ao nosso corpo, pois a corrente que flui em nossa natureza e aquela que sai dela, sempre em circulação e móveis sob o efeito do movimento de transformação,  não  cessam de mover-se senão quando cessa também a vida; tanto quanto este  fluxo  participa na vida, ele não conhece estabilidade: ou se enche, ou se dilui, ou passa sempre através desses dois processos. Se,  portanto,  o homem não é mais aquele de ontem,  mas a mudança faz tornar-se outro, quando a ressurreição reconduzir o nosso corpo à vida, um único indivíduo deverá tornar-se uma multidão de homens, para que nenhum aspecto falte ao ressuscitado: o recém-nascido, o menino, o rapazinho, o adolescente, o homem,  o pai, o ancião e todas as outras fases intermediárias.

Impossibilidade de adaptar pecado e castigo

A temperança e a intemperança se exercem através da carne: se aqueles que suportam pela piedade os tormentos das punições, e aqueles que por causa das sensações  corpóreas não conseguem resistir a eles, mostram [na vida presente] ou uma ou outra dessas atitudes morais, como pode no juízo ser salvaguardada a justiça? Ou ainda, se a mesma pessoa ora peca, ora se purifica com o arrependimento, ora reincide por acaso no pecado; e se tanto o corpo manchado como aquele isento de mancha se sucedem no processo natural e nenhuma das duas é capaz de durar perpetuamente, qual corpo será castigado junto com o intemperante? Talvez aquele contraído pela velhice e próximo à morte? Mas este é um corpo diverso daquele que cometeu o pecado. Então aquele que  foi manchado pela paixão? E onde está o ancião? Ou este último não ressuscita, e vã é a ressurreição, ou ele ressuscita, e aquele que estava submetido à pena pode escapar dela.

 

Destino dos órgãos corporais

Gostaria de recordar também uma outra objeção apresentada por aqueles que não aceitam a nossa doutrina. A natureza, dizem eles, não criou partes de nosso corpo, desprovidos de funções. Algumas possuem em si o princípio e a força de vida, e sem elas não é possível, não poderia subsistir a nossa vida carnal: refiro-me ao coração, ao fígado, ao cérebro, aos pulmões, ao estômago e ao resto das entranhas. Outras partes são reservadas aos movimentos próprios das sensações; outras têm por objeto a energia necessária à ação e a força que faz agir e se deslocar,  e as outras são necessárias para  que se sucedam os descendentes. Se a nossa vida  futura se desdobrar do mesmo modo,  a nossa transferência para ela será desprovida de significado; se, ao contrário, são verdadeiras – e, de fato, o são – as palavras que estabelecem que na vida sucessiva à ressurreição não existirá mais o matrimônio e que essa não será mais regulada pela alimentação e pelas bebidas, qual será o uso das partes do corpo, uma vez que não se esperará mais, na outra vida, aquilo pelo que existem  atualmente nossos membros? Se,  de fato, os órgãos destinados ao matrimônio existem justamente para isso, quando o matrimônio não existir mais, não teremos mais necessidade tampouco dos relativos órgãos. Do mesmo modo, as mãos servem para agir, os pés para caminhar, a boca para receber os alimentos, os dentes para triturar os alimentos, as vísceras para a digestão,  e  os orifícios de excreção para a eliminação das coisas inúteis. Quando, portanto, essas operações não existirem, como ou para qual objetivo existirão os órgãos que lhes são ordenados? Em consequência, se no corpo não existirem os órgãos que não poderão de fato contribuir [ao desenvolvimento] da outra vida, não poderá mais existir nenhuma das partes que agora compõem o nosso corpo, uma vez que esta vida conhecerá outras condições; mas então uma tal mudança não se pode mais chamar ressurreição, uma vez que cada membro em particular, em razão de sua inutilidade na outra vida, não ressuscitará junto com o corpo. Se, ao contrário, é em todos esses membros que deve operar a ressurreição, vãs e inúteis para a vida futura serão em nós as realidades criadas pelo autor da ressurreição. Entretanto, é preciso acreditar ao mesmo tempo que a ressurreição existe e que ela não é vã. É preciso, portanto, prestar bem atenção ao que

afirmamos, para salvaguardar plenamente a verossimilhança desta doutrina.

 

Resolução das aporias: o mistério da ressurreição como restauração (apokatástasis) do ser humano na sua condição originária, anterior à queda e resguardado de qualquer acidente

Eis as reflexões que eu havia feito. “Não é de maneira vulgar,  disse  nossa mestra,  que, seguindo o que chama retórica, tu atacaste a doutrina da ressurreição, desenvolvendo de todos os lados a verdade, de uma maneira persuasiva, mediante argumentos adaptados à refutação; aqueles que não consideraram muito bem o mistério da verdade poderiam, em consequência, convencer-se da verossimilhança de teu discurso e acreditar que foi justo suscitar dúvidas sobre tudo quanto foi dito. A verdade, porém, não é esta – continuou ela –, mesmo que não sejamos capazes de responder ao teu discurso com semelhantes artifícios retóricos. O verdadeiro discurso sobre essas questões se encontra conservado nos tesouros escondidos da sabedoria100 e nos será revelado quando nos tiver sido ensinado com os fatos o mistério da ressurreição; então  não teremos mais necessidade de palavras para revelar o objeto de nossa esperança. Quando aqueles que permanecem despertos fazem, à noite, muitos discursos sobre a natureza da luz do sol, o dom do raio solar, com sua única aparição, torna vã toda descrição; do mesmo modo aquilo que esperamos, uma vez conhecido por experiência, mostra a nulidade de qualquer discurso que procure descrever de modo conjectural o nosso estado futuro. Mas visto que não é preciso deixar sem examinar as objeções que são levantadas contra nós, trataremos tal argumento do seguinte modo.

 

A ressurreição restaura o estado primitivo…

É preciso, antes de tudo, compreender qual é o objeto da doutrina da ressurreição, em vista do que ele é afirmado pela sagrada Escritura e é objeto de fé. Para descrevê-la sumariamente com uma definição, diremos assim: a ressurreição é a reconstituição (apokatástasis) da nossa natureza na sua condição originária. Na vida originária, criada por Deus mesmo, não existiam, como é natural, nem velhice, nem adolescência, nem os sofrimentos associados às várias doenças, nem as outras debilidades próprias da miséria corpórea – que tenha sido Deus que criou essas coisas é de todo inverossímil. Ao contrário, a natureza humana, antes de tornar-se presa dos impulsos maus, era alguma coisa de divino. Todas as misérias acima descritas irromperam em nós com a entrada do mal. A vida privada do mal não será, portanto, mais obrigada a encontrar-se naquilo que foi produzido justamente por causa dele.

O corpo de quem atravessa lugares gelados se resfria,  e a pele  de quem caminha  sob o calor dos raios solares se bronzeia; essas pessoas, porém, se se afastam destas duas [fontes de frio e de calor], não suportam mais nem o bronzeamento nem o resfriamento; não seria razoável procurar o efeito de determinada causa quando a causa não mais existe.

… que não conhecia nem paixões nem animalidade

Do mesmo modo a nossa natureza, tornada presa das paixões, foi arrastada por aquilo que é necessariamente associado à vida passional. Quando, porém, subir novamente à bem-aventurança desprovida de paixões, essa não será mais arrastada pelas consequências do mal. Uma vez que aquilo que é próprio da vida irracional e que se misturou com a natureza humana não se encontrava em nós antes que o homem caísse nas paixões por causa do mal, quando abandonarmos as paixões, não poderemos não abandonar também tudo aquilo que aparece associado a elas. Por conseguinte, não é  justo procurar na outra vida as coisas que foram produzidas em nós pelas paixões. Com efeito, da mesma maneira que, quem veste uma túnica rasgada e depois se despoja deste invólucro não vê mais sobre si mesmo a torpeza da vestimenta que jogou fora, assim também nós, uma vez despojados desta túnica de morte e de vergonha tirada das peles dos animais e lançada sobre nós – ouvindo falar do termo “pele”,101 eu compreendo a forma da natureza animal, da qual fomos revestidos quando nos unimos às paixões  –,  nós nos despojamos, libertando-nos da túnica, de tudo o que nos envolvia e pertencia à pele dos animais irracionais. Aquilo que recebemos da pele dos animais irracionais é representado pela união sexual, pela  concepção, pelos partos, pela  impureza, pela amamentação, pela nutrição, pela eliminação dos excrementos, pelo crescimento gradual, pela juventude, pela velhice, pelas doenças, pela morte.  Se esta pele  não permanecer mais sobre nós, como poderão permanecer as coisas que são produzidas por ela? É, portanto, inútil, se esperamos desfrutar de uma condição diversa na vida futura, mover contra a doutrina da ressurreição objeções baseadas em coisas que nada têm a ver com ela. Com efeito, que há de comum entre o estado de um corpo deformado ou cheio de vigor, entre um estado de definhamento e a obesidade, ou entre qualquer outro acidente sobrevindo à natureza fluida do corpo, e a outra vida, que é estranha à mutabilidade e à transitoriedade da vida presente?

 

A ressurreição é restauração da vida

A doutrina da ressurreição não tem senão uma só coisa para examinar, o fato de que o homem veio à existência por geração, ou antes, como diz o Evangelho, se “um homem nasceu no mundo”.102 Mas o fato de viver muito tempo ou morrer jovem,  ou o gênero  de morte, que ela seja sobrevinda assim ou de outro modo, é vão examiná-la segundo a doutrina da ressurreição. Com efeito, qualquer que seja a hipótese formulada neste domínio, a situação é absolutamente semelhante, pois uma diferença deste gênero não se comporta, em se tratando da ressurreição, nem de dificuldade nem de facilidade. Quem começou a viver é destinado a viver para sempre, uma vez que a dissolução que lhe toca com a morte é depois anulada pela ressurreição. Mas como ou quando se produz a dissolução, em que isto importa para a ressurreição? O exame dessas questões  diz respeito a outro tema: por exemplo, viveu-se entre os prazeres ou entre as dores,  segundo a virtude ou segundo o vício, de modo louvável ou reprovável, miserável ou feliz? Todas essas coisas e outras semelhantes se descobrem quando se toma a medida

de uma vida ou o gênero de vida que levou; e assim, para emitir um julgamento sobre os defuntos, o juiz tem necessidade de indagar sobre seus sofrimentos, sobre suas mutilações, sobre suas doenças, sobre sua velhice, sobre sua flor da idade, sobre sua juventude, sobre suas riquezas, sobre sua pobreza; [e deve saber] como se comportou  em cada uma dessas situações, se transcorreu bem ou mal a vida que lhe foi confiada  pela sorte, se recebeu muitos bens ou males em uma duração prolongada, ou se não conheceu nem o bem nem o mal nem mesmo no início de sua vida, tendo cessado de viver quando a sua mente não era ainda plenamente desenvolvida. Mas, quando Deus, pela ressurreição, reconduz a natureza humana ao seu estado primitivo, é vão fazer semelhantes discursos, e pensar que a potência divina seja impedida em seus propósitos por tais objeções.

 

Deus deseja que todos, purificados, estejam nele

O propósito de Deus é um só: tornar possível para todos a participação nos bens que se encontram nele, passando por cada um dos homens, toda a plenitude de nossa  natureza – falo seja dos homens que se purificaram do mal já nesta vida, seja daqueles que, depois desta vida, foram curados pelo fogo por um período de tempo conveniente, seja daqueles que nesta vida não conheceram nem o bem nem o mal. A propósito desses bens, a Escritura diz que nenhum olho jamais os viu, nem ouvido jamais os ouviu, nem pensamento jamais os atingiu.103 Na minha opinião, esses podem encontrar-se somente em Deus mesmo: o bem que se encontra acima do ouvido, da visão e do coração é o ser mesmo que transcende o universo. Quanto à diferença entre um vida segundo a virtude e uma vida segundo o vício, ela aparecerá sobretudo na vida futura, onde a participação na felicidade esperada será mais rápida ou mais tardia. Com efeito, à medida do mal sobrevindo em cada um corresponderá perfeitamente a duração mesma da cura. A cura da alma consiste na purificação do mal; e esta, como se provou precedentemente, não poderá realizar-se sem um estado de sofrimento. Mas poder-se-á reconhecer melhor o  que as objeções têm de extravagância e de inconveniência se nos inclinarmos para a profundidade da sabedoria do Apóstolo.104

 

A semente na terra: 1Cor 15,35-38

Explicando este mistério aos Coríntios, que talvez lhe tenham apresentado as mesmas objeções que aquelas proferidas por eles, que agora atacam nossa crença para destruir a fé, e quando ele procura reprimir, por sua própria autoridade, a audácia da ignorância deles, assim diz: “Tu, portanto, me perguntas: como os mortos ressuscitam? Insensato, disse ele, o que semeias não recebe a vida se não morre; e quando tu semeias, não  semeias aquilo que é destinado a tornar-se o corpo [ressuscitado], mas somente um simples grão de trigo ou qualquer outra semente: é Deus que lhe dá o corpo, segundo a sua vontade”.105

 

A potência divina, inacessível ao homem, não conhece fracasso

Com efeito, aqui, ele parece-me fechar a boca daqueles que ignoram os limites próprios da natureza, que comparam à sua própria força a potência divina e que pensam que Deus seja capaz de fazer somente aquilo que pode encerrar-se na compreensão humana; na opinião deles, aquilo que está acima de nós supera também a potência de Deus. Quem perguntou ao Apóstolo como os mortos ressuscitam, deseja mostrar que é impossível que os elementos do corpo, uma vez dispersos, se reúnam novamente. E  visto que isso não seria possível e nenhum outro corpo pode ser considerado o produto  do encontro dos elementos, assim se expressa, dando à sua hipótese uma conclusão fundada em um raciocínio semelhante àqueles feitos por hábeis dialéticos: “Se o corpo é uma reunião de elementos, e se uma segunda reunião desses últimos é impossível,  de  qual corpo se servirão os ressuscitados? O Apóstolo chama estultícia este raciocínio, que, parece, foi composto por eles segundo alguma sabedoria artificial: esses não observaram no restante da criação a superioridade da potência divina; pois, deixando de lado os mais altos prodígios realizados por Deus, pelos quais ele teria podido colocar em embaraço o seu ouvinte – por exemplo, a natureza e a origem da substância celeste, do sol, da lua, daquilo que aparece nos astros, do éter, do ar, do fogo, da água, da terra – ele  refuta o  que há de temeridade em seus adversários com exemplos que estão ao nosso alcance e mais ordinários.

A agricultura não te ensina, disse ele, que é estulto aquele que avalia com os próprios critérios a superioridade da potência divina? Donde vem às sementes o corpo que nasce por elas? Que coisa precede o germinar delas? Não o precede talvez a morte,  se  é verdade que a morte é dissolução do composto? A semente não chegaria a germinar se não se dissolvesse no solo e não se tornasse toda porosa, para misturar-se, com sua qualidade própria, à temperatura ambiente; só assim ela se transforma em raiz e em rebento. E não permanece tampouco nesse estado, mas se torna uma haste estreita  na  sua parte central pelos nódulos que servem de liames, de modo que ela possa suportar,  em sua posição ereta, a espiga carregada de frutos. Onde se encontram todas essas coisas no grão de trigo antes que se dissolvesse no solo? Entretanto, dele derivam! Se isto não tivesse existido antes, não teria nascido nem mesmo a espiga. Da mesma maneira, portanto, que o corpo, no estado de espiga, nasce de semente, graças à potência divina que, a partir dela justamente a realiza habilmente – e ele não é de todo  idêntico  à semente, nem totalmente diverso dela –, assim também o mistério da ressurreição te foi explicado antecipadamente através das maravilhas contidas nas sementes. A potência divina, na superioridade de seu poder, não somente te restitui a semente desatada, mas te dá em acréscimo também frutos grandes e belos, graças aos quais a tua natureza recebe uma condição mais magnífica.

 

A ressurreição, transfiguração da natureza: 1Cor 15,42b-44a

“É semeado, diz o Apóstolo, na corrupção, e se ressuscita na incorruptibilidade; é semeado na fraqueza, e se ressuscita na força; é semeado na ignomínia,  e se ressuscita  na glória; é semeado como corpo psíquico, e se ressuscita como corpo espiritual.”106 Da mesma maneira que o grão de trigo no solo, depois de ter sido dissolvido, abandonou sua

pequenez de volume e as propriedades naturais de seu estado, mas não a si mesmo –  uma vez que permanece em si mesmo e se torna espiga, infinitamente diferente dele mesmo pela grandeza, pela beleza, pela diversidade e pela aparência exterior –,  do  mesmo modo também, a natureza humana abandona com a morte todas as propriedades que havia adquirido por causa de seu estado passional – falo da ignomínia, da corrupção, da fraqueza, das diferenças de idade, mas não a si mesma; ela é, ao contrário, transformada em uma espiga para atingir a incorruptibilidade, a glória, a honra,  a potência, a perfeição total; e a sua vida não mais regulada pelas propriedades naturais, mas passa para uma condição espiritual e estranha às paixões. A característica do corpo psíquico consiste no abandono de seu estado presente e em transformar-se em uma outra coisa em virtude de um fluxo e de um movimento contínuos, pois nenhuma das coisas  que agora vemos não somente nos animais, mas também nas plantas e nos animais permanecerá na vida futura.

 

Anterior à semente, a espiga simboliza Adão antes da queda

Mas parece-me que as palavras do Apóstolo concordam plenamente com as nossas suposições sobre a ressurreição e aludem ao conteúdo da nossa definição, que diz que a ressurreição outra coisa não é senão o retorno ao nosso primitivo estado natural. Com efeito, o que aprendemos da Escritura é que, na primeira criação do mundo, a terra fez, primeiramente, produzir a erva de um grão, como diz o texto;107 em seguida, da erva se formou a semente que justamente, uma vez caída sobre a terra, fez brotar por sua vez novamente o mesmo tipo de planta produzida no início. O Apóstolo diz que  este  processo se verifica também na ressurreição. Com efeito, aprendemos dele não somente que a natureza humana conhece uma transformação mais elevada, também que o objeto da nossa esperança outra coisa não é senão a condição primitiva. Uma vez que no início não foi a espiga que nasceu da semente, mas foi a semente que nasceu da espiga, e só sucessivamente a espiga cresce da semente, o sentido deste exemplo mostra claramente que toda a bem-aventurança que renascer para nós pela ressurreição será um retorno à graça original. Em certo sentido, nós também éramos uma espiga no início; uma vez que, porém, tínhamos sido ressecados pelo violento ardor do mal, a terra, que nos recebeu, dissolvidos pelo efeito da morte, transformará novamente, na primavera da ressurreição,  a semente desnuda representada pelo corpo em uma espiga grande, rica e ereta, que se estenderá até o céu e que se tornará notável não pela haste e pelos frutos, mas pela incorruptibilidade e por outros sinais distintivos, dignos de Deus: “Este corpo sujeito à corrupção deverá revestir-se da incorruptibilidade”.108 Mas consta que a incorruptibilidade, a glória, a honra e a potência são marcas próprias da natureza divina, marcas que precisamente estavam antes naquele que foi formado à imagem  de Deus,109  e representam agora o objeto da nossa esperança. Adão, o primeiro homem, era a  primeira espiga. Mas, visto que a natureza humana foi dividida em uma multidão de homens com a entrada do mal, assim como acontece com os frutos da espiga, nós todos, que nos vimos despojados totalmente da forma que nos dava esta espiga e que fomos

misturados com a terra, na ressurreição renasceremos, segundo a beleza do arquétipo, ainda que não sejamos mais a única espiga originária, mas nos tornaremos as miríades infinitas de campos de trigo.

 

Vida virtuosa, purificação e retorno à imagem verdadeira de Deus

Mas a vida virtuosa conhecerá em razão do mal as seguintes diferenças: aqueles que nesta vida se cultivaram por meio da virtude se tornam logo uma espiga perfeita; mas aqueles em que o mal tornou débil e exposta aos danos do vento nesta vida a potência contida na semente psíquica – isto,  segundo os sábios nesses assuntos,  costuma acontecer às chamadas sementes duras – mesmo se [um dia] ressurgirem, serão tratados pelo juiz com grande severidade, porque não tiveram força para reencontrar a forma da espiga e se tornarem o que precisamente éramos antes da queda sobre a terra. O tratamento que aplica aquele que está à frente dos produtos da terra consiste em recolher as ervas más e os espinhos que cresceram com a semente,110 visto que toda a potência que alimenta suavemente a raiz se espalhou sobre uma planta bastarda, e assim  a  semente boa, sufocada pelo rebento contrário à sua natureza, permaneceu sem nutrimento e não se desenvolveu. Quando todas as ervas bastardas e estranhas forem separadas da planta genuína e levadas à destruição pelo fogo que consome o elemento exterior à natureza, então a natureza desses seres também prosperará e produzirá os seus frutos maduros reassumindo, depois de um longo período, a forma comum a todos os homens, que Deus imprimira em nós no início. Mas bem-aventurados todos aqueles que, renascendo na ressurreição, veem brotar imediatamente a perfeita beleza da espiga. Dizemos isso não porque na ressurreição seja visível alguma diferença entre os corpos daqueles que viveram segundo a virtude e os corpos daqueles que viveram segundo o vício, de sorte que se deva considerar imperfeitos estes últimos e perfeitos os primeiros. Mas da mesma maneira que, durante sua vida, o prisioneiro  e o homem livre  são todos  os dois ao mesmo tempo semelhantes em seus corpos, mas que entre ambos a diferença  é grande no que concerne ao prazer e à dor, assim, julgo eu, se deve conceber  a diferença entre os bons e os maus no tempo futuro. A perfeição dos corpos que  renascem da corrupção consiste, segundo as palavras do Apóstolo, na incorruptibilidade, na glória, na honra e na potência; mas a deficiência dessas prerrogativas não implica a mutilação corpórea de quem renasce, mas uma privação e uma ausência de tudo o que corresponde à noção de bem. E visto que dos dois termos da alternativa, bem e mal, um só pode encontrar-se em nós, é evidente que, se dizemos que em uma pessoa não se encontra o bem, comprovamos a presença do mal nela. Ora, no mal não há nem a honra, nem a glória, nem a incorruptibilidade, nem a potência. Portanto, não se pode absolutamente duvidar do fato de que naqueles em que não estão presentes esses bens se encontram os males que julgamos opostos, a saber: a fraqueza, a desonra, a corrupção e outros males do mesmo gênero, dos quais se falou precedentemente. As paixões produzidas pelos mal se abolem dificilmente da alma,  uma vez que se encontram misturadas com ela em sua totalidade, tendo crescido com ela e formado uma só coisa com ela. Quando, portanto, os seres desse gênero forem eliminados e destruídos pela

cura do fogo, cada uma dessas realidades cuja noção tem um conteúdo positivo virá tomar o lugar: a incorruptibilidade, a vida, a honra, a graça, a glória, a potência, e toda outra realidade desse gênero que, segundo nossas conjecturas, se possa contemplar ao mesmo tempo em Deus mesmo e em sua imagem, que é a natureza humana.”

1    Os subtítulos em itálico na tradução não pertencem ao original, mas foram  acrescentadas  a  partir  das divisões propostas por vários comentadores a fim de facilitar a compreensão dos argumentos  de Gregório  de Nissa. Baseio-me especialmente em Henriette Meissner (em Rhetorik und Theologie: der Dialog Gregors von Nyssa De anima et resurrectione.Frankfurt a. Main: P. Lang, 1991), J. Terrieux (em GRÉGOIRE DE NYSSE, Sur l’âme et la résurrection. Paris: Du Cerf, 1995) e I. Ramelli (em GREGÓRIO DI NISSA. Sull’Anima e la Resurrezione. Introduzione, traduzione, note e apparati di Ilaria Ramelli. Milão: Bompiani, 2007).

 

2   Trata-se de Macrina, irmã de Gregório de Nissa; ela não é chamada com o seu nome próprio ao longo  de  todo o diálogo, mas é designada sempre ora como “a virgem” (parthénos), ora como “a mestra” (ho didáskalos) com o termo no masculino. No presente diálogo, Macrina emerge como autêntica iniciadora  aos  mistérios cristãos, mystagōgós feminino, como mestra de filosofia cristã. Houve quem chamasse a atenção para o seguinte fato: só com o Cristianismo as mulheres puderam tornar-se filósofas. A base desta afirmação está fundamentada no pensamento paulino (Gl) da unidade espiritual dos gêneros em Cristo. Cf. H. M. MEISSNER, Rhetorik und Theologie: der Dialog Gregors von Nyssa De anima et resurrectione, pp. 23-33.

 

3  O autor faz alusão à teoria da essência da alma, cuja dinâmica é ilustrada por Platão no Fedro 246 b com o  mito da parelha de cavalos desiguais das diversas partes da alma e do seu cocheiro, a razão. Tornou-se célebre assim na tradição platônico-patrística, bem como em Fílon de Alexandria, a comparação entre a razão,  que controla as emoções, e o cocheiro, que mantém o freio dos cavalos.

 

4 Cf. 1Ts 4,13.

 

5   O autor menciona aqui uma concepção que exerceu grande influxo na tradição filosófica: a alma como princípio de vida (dotikòn aition). O locus classicus desta concepção é o Fédon de Platão: “Então, dize-me, que coisa se deve gerar em um corpo para que esteja vivo? – Naquele corpo se deve gerar a alma” (Fédon 105  c  9-  11; cf. também Crátilo 399 c).

 

6   Gregório de Nissa tem em vista provavelmente os filósofos da escola cética, fundada por Pirro de Élida (séculos IV-III a.C.), e seus seguidores na Academia média (séculos IV-III a.C.): certamente podemos mencionar Arcesilau, o mais  ilustre expoente da Academia platônica,  que inaugurou tendências céticas nesta. A escola cética e seus seguidores sustentaram, portanto, a absoluta incerteza acerca da verdade, a equivalência dos raciocínios e        a consequente necessidade de abster-se de qualquer juízo (“suspender o juízo”, epoché).

 

7 Cf. At 17,16-18.

 

8   A imagem da bolha de ar para falar da vida ou da alma humana é comum na filosofia de Epicuro (Cartas I,64-66), cujo tema mais importante é o desejo de libertar-se do medo da morte: se a vida não é senão um acaso, por que então temer a morte?

 

9   Literalmente: tò phainómenon. Trata-se daquilo que é evidente aos sentidos, que aqui é definido confim ou limite da natureza, enquanto Epicuro fazia da sensação o critério fundamental e limitava o  existente ao  que é físico, excluindo, portanto, toda metafísica.

 

10  Desde Platão conhecia-se o tema da prova da existência de Deus através da visão da beleza do mundo. Em Fílon de Alexandria encontramos também as comparações aqui utilizadas por Gregório de Nissa: a menção da veste, do navio, do edifício, como que, vendo tais realidades mediante os sentidos  externos,  permite-se  descortinar quem os fabricou.

 

11  Inicia-se a refutação das objeções materialistas: na verdade a alma é imaterial. 12 Cf. Pr 26,4.

13 Cf.  Sl 18,1.

 

14  Trata-se da visão intelectual.  É uma imagem que provém de Platão e se encontra em todo o  Platonismo.

 

15    É célebre o paralelismo entre o cosmo e o homem, macrocosmo e microcosmo (25A-29B),  entre inteligência que governa o homem e a força divina que governa o universo. Eis um exemplo da dependência filosófica deste paralelismo: “Alguns ousaram assimilar o universo àquele minúsculo ser vivente que é o homem, tendo observado que ambos são constituídos por um corpo e por uma alma racional. Em consequência, com uma metáfora, chamamos o homem de ‘pequeno cosmo’, e o cosmo, de ‘grande homem’”. (FÍLON DE ALEXANDRIA, Quis rerum divinarum haeres, 155; cf. também De opificio mundi,69).

 

16   Macrina sustenta que a alma existe por si mesma, como as Ideias platônicas, independentemente das realidades que aparecem aos sentidos, exatamente como a natureza divina, a Theia phýsis, da qual chega deste modo a mostrar a existência.

 

17  Antíoco de Ascalona (século I a.C.) sustentou precisamente o que Gregório de Nissa acaba de afirmar: as faculdades sensoriais são animadas por uma energia proveniente da mente. Ocorre, porém, observar que as palavras “no objeto e na ideia que se encontra acima dessas” nos remetem para a esfera platônica.

 

18  A ideia aqui utilizada acerca do papel da geometria é tipicamente platônica, tendo sido herdada pela tradição platônico-patrística: cf. PLATÃO, Rep. VII, 527b; ALBINO, Did. 161,16-20; CLEMENTE DE ALEXANDRIA, Strom. VI, 90, 4.

 

19  A expressão “a substância intelectual e incorpórea da alma” faz eco ao texto do Fédon (80b) de Platão, onde  a alma é dita “assaz semelhante ao inteligível” e é contraposta ao corpo. Eis  a passagem do Fédon em questão:  “…a alma é semelhante àquilo que é divino, imortal, inteligível, uniforme, indissolúvel, sempre  idêntico  a  si mesmo, enquanto o corpo é semelhante àquilo que é humano, mortal, multiforme, ininteligível, dissolúvel e jamais idêntico a si mesmo”.

 

20  Segundo o discurso de Macrina, trata-se das coisas e dos aspectos que percebemos com os sentidos.

 

21  Ou seja, se o intelecto humano é semelhante a Deus. Para Gregório de Nissa, o homem é imagem de Deus não no corpo, mas na alma, e particularmente no que concerne à faculdade mais elevada da alma, a saber: a faculdade intelectual (nous). Cf. Gn 1,26-27.

 

22   A “natureza pequena e caduca” diz respeito ao homem. A rigor, a mente humana, semelhante a Deus, não poderia ser definida “caduca”; aqui, Gregório, com o objetivo de evidenciar a grande diferença que sempre existe entre Deus e o homem, parece esquecer que o atributo “caduca”, mais do que à inteligência e à alma, convém ao corpo.

 

23    Afirmando frequentemente a impossibilidade de conceber como alma e corpo estão unidos,  Gregório enfatiza aqui a noção da alma como “princípio vital”; ele mostrará mais adiante que é através do intelecto  (nous) que se define verdadeiramente a natureza humana.

 

24  O texto grego traz: technikē dýnamis, traduzido em latim como “artifi-

ciosa vis…” Segundo o contexto, é mais plausível traduzir technikē como “capaz de”.

 

25   Gregório de Nissa alude à célebre psicologia moral de Platão no Livro IV (441 a-442b) da República, segundo a qual as duas partes inferiores da alma humana são representadas pela parte irascível e pela  concupiscível.

 

26  O problema é claramente levantado acerca da essência da alma: o nous ou as paixões? Em outras palavras: como é possível conciliar a afirmação de que na alma existe uma multiplicidade de atividades  e de faculdades  com a doutrina da unidade, simplicidade e indissolubilidade da essência inteligível da alma? Partindo de uma crítica à tradição filosófica acerca das faculdades da alma, Gregório de Nissa propõe a seguinte tese: o que caracteriza a alma na sua verdadeira essência é somente o nous; as faculdades da alma são  alguma  de acidental e adventício que nela estão presentes como consequência da sua união com o corpo.

27  A distinção entre natureza (ousía) e faculdades (dynámeis ou mérē) da alma, frequentemente com a inclusão das operações (enérgeiai ou érga) tornou-se clássica a partir de Aristóteles (cf. De anima II, 2; II, 3; II, 4). Cf.

E. PEROLI, Il Platonismo e l’antropologia filosófica di Gregório de Nissa. Milão: Vita e Pensiero,1993, p. 240, nota 85.

 

28   O problema das faculdades da alma fazia parte das “quaestiones disputatae” nas escolas filosóficas do  tempo de Gregório. Depois da questão sobre a essência da alma, da sua corporeidade ou incorporeidade, discutia- se a questão das suas faculdades. Assim, por exemplo, Porfírio e Jâmblico, além  deste problema clássico acerca da alma, abordavam também uma questão levantada aqui e no Contra Eunomium por Gregório de Nissa: qual é a natureza dessas faculdades? Elas pertencem à essência da alma, ou são estranhas à sua essência?

 

29    Cf. PLATÃO, Fedro 246 b. Nesta passagem, Platão menciona a carruagem alada como  metáfora  da  essência da alma. Segundo a interpretação tradicional, o cocheiro é a inteligência, e os dois cavalos devem ser identificados com a alma concupiscível e irascível. Remetendo-se ao texto acerca da tripartição da alma na República IV, 436 a.

 

30   Trata-se de Aristóteles e de sua obra De Anima: forma do corpo, a alma nasce e desaparece com ele. Todavia, no diálogo Eudemo, Aristóteles sustentava a imortalidade da alma. Aristóteles  rejeitara  a  distinção platônica de três “partes” da alma espacialmente distintas  (cf. PLATÃO, Timeu 69 E ss.) e foi o primeiro  a falar  de dynámeis tēs psychēs (De anima II 3, 414 a 29). Se, de fato, a alma fosse dividida em partes, o que garantiria a sua unidade? Certamente não é o corpo, porque é a alma que garante tal unidade: dever-se-ia supor  uma outra  alma e assim ao infinito. Portanto, não se deve falar de “partes” da alma, mas, sim, de faculdades que  se distinguem só logicamente (Ibid., II 2, 413 b 29 s.). Hoje há quem faça uma leitura coerente das duas obras do Estagirita: a alma que Aristóteles declara imortal no Eudemo seria aquela superior e  puramente  intelectual  e imóvel; aquela, ao contrário, que é considerada mortal no De Anima seria aquela inferior, constituída por uma matéria extremamente sutil que funciona como instrumento e veículo da primeira, e capaz de transmitir ao corpo visível a vida, a sensação e o movimento, conferidos a esse indiretamente pela alma superior. Cf. também I. RAMELLI em GREGÓRIO DI NISSA. Sull’Anima e la Resurrezione, p. 551, nota 25.

31 Cf. Gn 1,26-27.

 

32   A expressão “nada de semelhante” deve ser entendida assim: “nada de semelhante” às chamadas partes inferiores da alma, aquelas que Platão concebera como concupiscível e irascível. Gregório argumenta que tais aspectos, na medida em que não se encontram em Deus, não fazem parte tampouco da verdadeira essência da alma. Consequentemente, só o aspecto racional é essencial à alma.

 

33   Para o pensamento ocidental, que parte da filosofia grega, o homem é concebido como um ser vivente e racional. Daí a fórmula clássica: “O homem é um animal racional”.

 

34  A definição “essencial” da alma não é comprometida mesmo admitindo a coexistência nela de realidades que pertencem a ordens diferentes.

 

35  É traço comum à tradição  platônica esta demonstração do estranhamento das  faculdades  inferiores  da alma e das paixões a estas conexas à essência da alma.

 

36 Cf. Nm 12,3.

 

37  A fórmula hē mèn gár estin hoper estín é forte, e Gregório de Nissa assevera que identificar a alma com as paixões nada diz acerca da essência verdadeira da alma.

 

38  Myrmēkíai tinès tou dianoētikou mérous tēs psychēs. 39 Cf. Dn 9,23; 10,11 (Teodicião).

40 Cf. Nm 25,7-11; Sl 105,30-31.

 

41 Cf. Pr 9,10.

42 Cf. 2Cor 7,10.

 

43 Cf. Mt 10,28; Lc 21,19.

 

44 Cf. 1Pd 3,4.14.

 

45   tēs psychēs en methoríoi keitai. Gregório de Nissa menciona o tema do homem como confim, fronteira (methórios), como ponto de demarcação entre a matéria e o espírito. Originalmente, methórios é principalmente  um termo geográfico: indica a linha de demarcação, a “fronteira”, entre duas áreas geográficas. Assim, a alma é confim (methórios) de duas realidades, uma inteligível, incorpórea, incorruptível; a outra, corpórea, material, irracional. O termo methórios, quando atribuído ao homem, não indica mais a sua condição de colocar-se nos confins entre matéria e espírito, mas a condição de liberdade como tal, em sua qualidade de constituir a fronteira entre o bem e o mal. Cf. J. DANIÉLOU, L’Être et le Temps chez Grégoire de Nysse. Leiden: Brill, 1970, pp. 116- 132.

 

46  Cf. Gn 1,11-27. Gregório inicia o seu comentário à narração bíblica da criação. 47 Isto é, os anjos.

48 Trata-se dos objetos completamente inanimados, que não são nem plantas nem animais. 49 Trata-se das plantas, que possuem uma alma vegetativa segundo a tripartição aristotélica. 50 Trata-se dos homens.

51  Trata-se dos animais.

 

52   É um axioma fundamental do estoicismo a tese segundo a qual existe uma união indissolúvel entre a inteligência e as faculdades sensoriais na alma humana.

 

53  Tò aeidés, com um jogo de palavras em relação a hades.

 

54   Hades fora concebido, desde longa data, como um lugar subterrâneo – sob a superfície da terra –  que  recebe as almas depois da morte. Hades, deus dos mortos para os antigos Gregos, dá nome ao lugar de sua habitação. Uma descrição detalhada da sede subterrânea dos mortos pode ser  encontrada no  Fédon  (111c-114c) de Platão.

 

55    Gregório utiliza o termo técnico, típico de Orígenes: apokatástasis, empregado também por Paulo. A doutrina da apokatástasis representa um dos temas mais delicados e discutidos no pensamento de Gregório de Nissa, precisamente porque a sua obra contém afirmações explícitas da eternidade do inferno e ao mesmo tempo da apokatástasis. As interpretações convergem para dois conceitos fundamentais de salvação universal e ressurreição universal. Segundo os comentadores, a apokatástasis nissena deve ser  entendida  como restauração do homem ao seu estado natural, isto é, àquele estado primitivo desejado por Deus,  de sorte que tal restauração vem a ser sinônima de ressurreição final. Em outras palavras: a apokatástasis na obra de Gregório de  Nissa consiste “não na questão se no final todos os homens  se salvarão ou não,  mas  na perfeição com a qual o homem é restituído – restaurado – ao projeto original, à graça primitiva, à primeira criação, à imortalidade” (L. F. MATEO-SECO, citado em G. MASPERO, Apocatastasi, in MATEO-SECO, L. F. & MASPERO, G.  (org.), Gregorio de Nissa. Dizionario. Roma: Città Nuova, 2007, pp. 99-100.

56 Fl 2,10.

 

57 Isto é, as criaturas inferiores, os demônios. Segundo I. RAMELI, Gregório aceita também a parte mais perigosa da doutrina da apokatastasis de Orígenes, isto é, aquela da reintegração final até mesmo do diabo e de todos os espíritos malignos, uma vez que tudo no final deve ser submetido a Cristo e, portanto, a Deus, isto é, ao Bem. Este texto induziu a pensar que Gregório de Nissa tenha professado talvez a doutrina da apokatástasis no sentido mais rigoroso do termo, incluindo a salvação do demônio (cf. comentário ao texto de Ilaria RAMELI em GREGÓRIO DI NISSA, Sull’Anima e la Resurrezione, p. 569, nota 63).

58 Ver Lc 16,19-31.

 

59 Cf.  Lc 16,25.

 

60 Cf.  Lc 16,25.

 

61 Cf. Gn 2,16-17; 3,2-3.

 

62  Implicitamente afirma-se tanto a eternidade do mal como do bem, segundo a livre escolha de cada um, que Deus respeita. Esta afirmação vai de encontro à certeza de Gregório de Nissa, proclamada mais adiante, de um desaparecimento total do mal. Cf. J. TERRIEUX em GRÉGOIRE DE NYSSE, Sur l’âme et la résurrection,  p.  132, nota 1.

 

63  Gregório de Nissa faz um jogo com os vocábulos em torno da palavra “seio” de Abraão. Em grego kolpos significa, antes de tudo, o seio materno; em seguida, a prega de uma vestimenta, o seio do mar ou da terra, a sinuosidade do litoral. Daí o termo golfo. Em latim, o termo correspondente é sinus, que  significa  “curva”, “prega”, “dobra”; “golfo”, “baía”, “enseada”. Em sentido figurado, quer dizer precisamente “seio”, “coração”, “peito”.

 

64   Ou seja, em virtude da alma, nos vários elementos estão potencialmente presentes os membros  do corpo: uma vez dissolvido o corpo terreno, a alma saberá recriar o corpo na ressurreição, com aqueles elementos que contêm em si virtualmente os membros do corpo.

 

65  É um eco à passagem do Fédon 66b-67b de Platão: o corpo é um obstáculo na procura do suprassensível.

O escopo do filósofo é a fuga deste mundo sensível e corporal.

 

66  É uma alusão ao texto de Platão no Fédon 81d: “… viram-se fantasmas em torno às tumbas”.

 

67   A contradição revelada por Gregório diz respeito à utilidade do desejo, que não pode ser uma paixão, pois sem ele toda ascensão da alma torna-se impossível.

 

68   Como deixa entrever o contexto imediato, as duas partes se identificam com a esperança e a memória; portanto, os conceitos de anterior e de posterior remetem, ao mesmo tempo, aos de precedente e sucessivo.

 

69 Rm 8,24.

 

70  A célebre fórmula pantos agathou epékeina foi tomada provavelmente de Plotino.

 

71   A ideia do mal como privação, como ausência do bem, como não dotado de uma realidade positiva, é de matriz platônica. Será desenvolvido por uma longa tradição, especialmente por  Agostinho,  pelo  pensamento  grego, pelo neoplatônico Proclo e pelo neoplatônico cristão Dionísio Pseudo-Areopagita. A propósito, ver minha tradução DIONÍSIO PSEUDO-AREOPAGITA, Dos Nomes Divinos. Introdução, tradução e notas. São  Paulo:  Attar Editorial, 2004. Especificamente sobre o mal, ver meu artigo A questão do mal na obra Dos Nomes Divinos (IV, 18-35) de Dionísio Pseudo-Areopagita.. Anais do I Encontro Nacional de Estudos Neoplatônicos –  Ontologia e Liberdade 1 (2006), pp. 165-176. Disponível em: http://www.bentosilvasantos.com

 

72 1Cor 13,8.

 

73 1Cor 13,13.

 

74 Hb 11,1.

 

75 Cf. Mt 18,23-25; Lc 7,41; Mt 5,26.

 

76 Ver Mt 18,34.

 

77   Ver 1Cor 15,28. Nas linhas precedentes aparece a associação das ideias: purificação, liberdade, relação de familiaridade com o semelhante; portanto, com a virtude e, através dela, com Deus. Notar a alusão ao texto de

Platão: “A virtude não conhece mestre” (República 617 e).

 

78  No original: kaì eis pánta genésthai ton theon, kai en pâsi.

 

79  O termo da epéktasis, enquanto tensão da alma para Deus que se desenvolve em um contínuo crescendo,  é  “a síntese da espiritualidade gregoriana”, na medida em que a vida espiritual consiste em um progresso contínuo para Deus que prosseguirá no céu: toda conquista da alma, todo novo progresso no amor, se converte imediatamente em um novo ponto de partida em direção a um maior desejo e a um maior amor.

 

80  O Cristianismo foi definido como philosofia theia pelo apologista Justino, por Clemente de Alexandria, por Orígenes etc. Ver C. MORESCHINI, História da Filosofia Patrística. São Paulo: Loyola, 2008, pp. 599-643.

 

81  Notemos as três formas de metempsicose aqui mencionadas: migração da alma entre o homem e o animal (posição de Pitágoras e de Platão), extensão desta migração até as plantas (Empédocles  e Plotino),  migrações  entre humanos somente (certos Pitagóricos, Porfírio provavelmente, Jâmblico, Hiérocles).

 

82  Esta descrição aparece em PLATÃO, Fedro 246 b6-249 ds e Timeu 41d-42d, mas nos textos platônicos não se fala da transmigração das almas nas plantas.

 

83  A transmigração implicaria o controle dos eventos não por ação da providência e da virtude, mas por força  do acaso e do mal.

 

84 Hb 11,3.

 

85  Acerca da vontade de Deus como causa da existência e da substância dos seres, comentaram muitas vezes tanto Panteno, mestre de Clemente de Alexandria (século II d.C.), quanto o neoplatônico Hiérocles.

 

86  Notemos a oposição feita por Gregório de Nissa: aos atributos próprios dos objetos  sensíveis é contraposta  a absoluta falta de atributos que, segundo a teologia negativa neoplatônica, é, ao contrário, característica do sumo princípio.

 

87  Cf. Sl 117, 27ab. A festa dos Tabernáculos era originariamente uma festa de ação de graças pelas  colheitas  de vinho, fruta e azeitonas. Prolongava-se pelo período de sete dias, de 15 a 21 de tishri (setembro-outubro).  Cf. Dt 16,13.15; Ez 45,25; Jz 16,20-31. A isso se acrescentava uma “festa final” (Lv 23,34ss.; Nm 29,35), que também se designava como oitavo dia festivo das tendas. As tendas de folhagem em que  permaneciam  os israelitas durante a festa eram uma imagem da salvação escatológica.

 

88 Sl 117, 27ab.

 

89 Em outras palavras: receberão novamente o corpo. As palavras “aqueles  que forem recobertos” se baseiam no Sl 117,27.

 

90 Fl 2,10.

 

91 Ver Ez 37,1-14. Este é o célebre texto que profetiza o reerguimento do povo  destroçado:  Ezequiel  o descreve como ossos secos, espalhados sobre uma vasta planície, por ordem do  Senhor;  aos  poucos  se recobrem de músculos, carne e pele; o espírito a eles volta, e recomeçam a viver; reerguem-se e constituem um exército numeroso e forte. Gregório interpreta esta metáfora, que diz respeito à ressurreição coletiva de Israel, em um sentido estritamente literal, como se anunciasse a ressurreição dos corpos.

 

92 Cf. 1Cor 15,52; 1Ts 4,16.

 

93 Cf. Jo 11,25-26; Mc 12,25-26.

 

94 Cf. Mt 8,3-16; 9,2-6.22-29 e paralelos.

 

95 Cf. Mt 9,23-25.

 

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